Artigo #29 – Necessidades que não são reais
Por Rose Campetti, membra do MOVE.
“Nos seres inferiores da Criação, naqueles a quem ainda falta o senso moral, nos quais a inteligência ainda não substituiu o instinto, a luta não pode ter por móvel senão a satisfação de uma necessidade material. Ora, uma das mais imperiosas dessas necessidades é a da alimentação.
KARDEC, A. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro. FEB (site). Capítulo 3. Item 24, pp. 74.
Eles, pois, lutam unicamente para viver, isto é, para fazer ou defender uma presa, visto que nenhum móvel mais elevado os poderia estimular. É nesse primeiro período que a alma se elabora e ensaia para a vida. No homem, há um período de transição em que ele mal se distingue do bruto. Nas primeiras idades, domina o instinto animal e a luta ainda tem por móvel a satisfação das necessidades materiais. Mais tarde, contrabalançam-se o instinto animal e o sentimento moral; luta então o homem, não mais para se alimentar, porém, para satisfazer à sua ambição, ao seu orgulho, a sua necessidade de dominar. Para isso, ainda lhe é preciso destruir. Todavia, à medida que o senso moral prepondera, desenvolve-se a sensibilidade, diminui a necessidade de destruir, acaba mesmo por desaparecer, por se tornar odiosa essa necessidade. O homem ganha horror ao sangue”.
Neste fragmento de texto extraído de o livro “A Gênese”, Allan Kardec faz uma abordagem ética sobre o significado de “necessidade”. Traça a trajetória dos seres espirituais que habitaram o orbe desde os primeiros tempos das suas existências terrenas, assim como as suas escolhas e desenvolvimento espiritual.
Salienta que a necessidade que imperou, nos primeiros seres da criação, foi a satisfação da necessidade mais básica, qual seja a da alimentação, motivo pelo qual toda a luta que se travou, nesse momento histórico, circunscreveu-se ao campo material de saciar a fome. Importante ressaltar, porém que, entre estes seres, apesar de guiados, ainda, pelo instinto, não se presencia a perseguição gratuita ou o exagero, ao contrário, somente a necessidade fisiológica move o instinto para a eliminação de outro ser.
Por sua vez, Kardec informa que, nas primeiras fases de existência, os seres habitantes deste orbe permaneceram circunscritos às necessidades materiais. Um pouco além dessa fase, observou-se, porém, que grande parte dos seres não mais lutava, exclusivamente, para a execução das suas necessidades básicas, como a alimentação, mas, para a satisfação do seu desejo de dominação.
Em seguida, Kardec projeta ideais para a humanidade futura que habitará a Terra. Expõe que, à medida que os valores espirituais preponderam, “o homem ganha horror ao sangue.”
No entanto, importante reconhecer que o modo de vida da sociedade atual e as suas escolhas ainda têm por base paradigmas fundamentados na ambição, no orgulho e no ímpeto de dominação. A humanidade cria necessidades cada vez maiores, dantes inimagináveis. Nessa esteira, a História mostra que grande parte da Humanidade não tem alcançado a capacidade de desenvolver as habilidades do Espírito para ampliar os graus mais profundos da consciência.
Alan Kardec, em “O livro dos espíritos”, na questão 713, indaga?
Os gozos têm limites traçados pela Natureza? — Sim, para vos mostrar o termo do necessário; mas pelos vossos excessos chegais até o aborrecimento e com isso vos punis a vós mesmos. [1]
Nesse sentido, a própria Natureza estabelece limites para a ação humana e esse limite é o “necessário”, porém, em razão de vícios milenares, os seres humanos criam necessidades que não são reais.
Cabe, pois, aqui, uma indagação: o que é o necessário diante de todos os apelos impostos pela sociedade de consumo? Como a humanidade contemporânea, diante da cultura do prazer e de hábitos milenares equivocados, conseguirá acessar a consciência clara para distinguir as balizas entre o necessário e o supérfluo? Não precisamos ir muito longe para encontrar a resposta a essa indagação. Na parte terceira de “O Livro dos Espíritos”, capítulo V, o ensinamento é providencial ao dizer que o ser ponderado conhece o limite do necessário pela intuição, no entanto, muitos seres só chegam a conhecê-lo pela experiência e pelo sofrimento.
Ou seja, estamos diante de uma dialética do espírito. O vocábulo “dialética” aqui deve ser entendido tanto no sentido de conflito originado pela contradição entre princípios teóricos ou fenômenos empíricos, como no sentido platônico de processo de diálogo, debate entre interlocutores comprometidos com a busca da verdade, através do qual a alma se eleva, gradativamente, das aparências sensíveis às realidades inteligíveis ou ideais.
Este conflito é a realidade tangível do homem hodierno. Grande parte dos seres não tem alcançado o acesso ao seu Eu mais profundo que, certamente, traria respostas claras para a sua crise interior. Estamos vivenciando uma Pandemia que, para aqueles que ainda dormiam, seria algo inimaginável, no entanto, já previsível para aqueles cuja compreensão maior das leis divinas já era a grande bússola para as suas vidas.
Assim, esta visão da realidade tem levado grande parte dos seres a chancelarem paradigmas distorcidos de comportamento. Embevecidos pela ordem social estabelecida, passaram a acreditar que várias ações equivocadas pudessem contribuir para o engrandecimento das nações. Tem-se, como exemplo, que dizimar florestas para fins da pecuária é louvável, uma vez que tais ações aumentam o produto interno bruto de um país. Nesse contexto, passou a ser normal saber que, na Amazônia, há mais bois do que humanos, que quase 65% das áreas desmatadas viraram pastos para gado e que esta atividade responde por cerca de 50% de todas as emissões brasileiras de gases do efeito estufa. [2]
De longa data, a comida que chega ao prato de grande parte da Humanidade é resultado da exploração desenfreada das grandes florestas e de maus tratos aos animais. Como afirmar que a humanidade já superou esta fase, se vive imersa em um antropocentrismo, fruto de grandes equívocos no trato com os seres da Natureza que nos foram confiados para cuidado e zelo.
Grande parte dos seres humanos conclama por um mundo melhor e para que haja mais amor entre todos, no entanto, ainda defende um amor antropocêntrico e especista, pois a sua própria alimentação é fruto de um sistema equivocado e cruel. A humanidade vive em um mundo paradoxal. Confunde ou deixa-se confundir pelos ditames de uma economia perversa e desigual. Conforme resposta da questão 713 de “O livro dos espíritos” o homem cria necessidades que não são reais, ou seja, que não fazem parte da realidade do espírito.
Assim, passamos milênios e milênios pintando o mesmo quadro com pequenas pinceladas de poucos matizes. Estamos enredados nos mesmos vícios, nos mesmos comportamentos aprisionantes, e utilizamos a tese da consolidação da “cultura” para permanecermos estagnados.
O mundo passa por uma crise sanitária sem precedentes que nos convoca para a busca de novas posturas, para um olhar mais integrativo com a Natureza, e uma visão mais crítica para com as grandes cidades e fast foods. Aprisionados por uma economia não distributiva, seguimos adiante com os velhos hábitos que, conforme resposta à questão 715 de “O Livro dos Espíritos”, pesam em nossos ombros.
No entanto, de acordo com o destacado no fragmento sob análise, à medida que o senso espiritual prepondera, desenvolve-se a sensibilidade e diminui a necessidade de destruir, a comprovar que a intuição é o grande sinalizador para acordar os corações dos seres. Somos centelhas fulgurantes, mas ainda ensaiando para as grandes conquistas do espírito, ora a expandir luz, transformando-a em chama intensa e bela, ora a apagá-la, sob o pretexto dos velhos vícios milenares. Somos a antítese, o paradoxo. O nosso sentimento humano aflora-se quando vemos um filme de sofrimento, no entanto, permanecemos inertes diante dos filhos da Natureza que batem a nossa porta, a implorar por um mundo mais justo e bom. Fazemos campanhas pela paz, mas passamos despercebidos diante de outros seres da natureza, puros e bons, que imploram pelo retorno da nossa essência divina, pelo nosso olhar mais amoroso e pela troca da foice pela compaixão.
Importante ressaltar que todo o orbe possui o seu ciclo de oportunidades para que os seus filhos avancem na seara do Bem, eliminando as suas necessidades supérfluas, sobretudo com o desenvolvimento dos valores espirituais. Para que os seres atinjam esta fase evolutiva descrita por Kardec, necessário se faz uma ampliação de olhar e de consciência. Se antes, a humanidade se deixou dominar pelas paixões, nesta outra fase de percepção, novos valores deverão nortear as ações humanas, que deixarão, na poeira do vento, a necessidade de destruir e de dominar.
Conforme dito no texto, “o homem ganhará horror ao sangue”, no sentido de não mais se digladiar com o próximo na busca de territórios, e de não mais se alimentar de outros seres, parceiros da natureza, pois já terá alcançado a dimensão de colher os frutos que reluzem sabedoria e plena consciência. Temos que acreditar que somos capazes de cortar caminhos para mudar a nossa história e para contá-la de forma diferente para as futuras gerações.
Referências:
[1] KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Tradução de Guillon Ribeiro. FEB (site). Capítulo V. Questão 713, pp. 331.
[2] Disponível em https://www.greenpeace.org. Acesso em 9 out. 2021.