Artigo #33 – Os animais não são inferiores: questionando a hierarquia evolutiva espírita

Texto de Rafael van Erven Ludolf.

Atenção as notas de rodapé ao final do texto.

Introdução

Tenho[1] questionado a hierarquia das espécies presente na teoria de evolução espírita por três motivos principais: i) por ser uma categoria produtora de violência e opressão históricas a humanos e não-humanos[2], ii) por ser insustentável cientificamente e iii) por não estimular os espíritas à solidariedade com os animais.

Quando comecei a tratar da questão animal no espiritismo (por volta de 2012) fui percebendo como a sua hierarquia evolutiva inferioriza os animais não-humanos. Porém, ao invés de reformulá-la, busquei reinterpretá-la[3] e defendi que, se a espécie humana se encontra num estágio evolutivo superior ao dos animais não-humanos, isso significa maiores responsabilidades de respeito e cuidado e não autorização para explorá-los. O objetivo foi alargar a solidariedade espírita para os animais não-humanos sem precisar mexer tanto na teoria espírita, facilitando a adesão dos espíritas à nova interpretação.[4]

No entanto, com o passar do tempo percebi que, por questão de ética e justiça, é preciso deixar no século XIX as noções hierárquicas ocidentais de culturas e espécies, profundamente enraizadas no contexto cultural e filosófico de Kardec, quando eram aplicadas na biologia e nas estruturas sociais, políticas e coloniais que, apesar de refletidas em suas obras, são insustentáveis face às ciências contemporâneas e estão no centro das desigualdades sociais e da emergência climática.

Sei que isso significa superar entendimentos de Allan Kardec e de autores espíritas conhecidos e, portanto, incomodar muitos espíritas. Acho isso ótimo, pois o grande problema dos espíritas foi ter abandonado o método e o caráter progressista de Allan Kardec, se afastando da ciência. Mas, acima disso, não é solidário (para dizer o mínimo) insistir numa categoria historicamente produtora de Injustiças Multiespécies.

Neste texto, busco apresentar argumentos de áreas como Estudos Multiespécies, Ética Animal, Estudos Críticos Animais etc., colocando-as em diálogo com os espíritas para ajudar a repensar a hierarquia das espécies presente na teoria espírita. Sem diálogo com a vasta produção de conhecimento e movimentação social pelos não-humanos, os espíritas poderão ficar engessados nas noções antropocêntricas, especistas e monoespécie típicas do contexto de Allan Kardec e presentes em sua obra.

Primeiro, discorro criticamente sobre o lugar dos animais em O Livro dos Espíritos e os atravessamentos daquele contexto que contribuíram para se estruturar uma teoria espírita hierárquica-antropocêntrica-especista-teleológica-racionalista-essencialista-positivista[5]que, em virtude disso, pouco estimula os espíritas a estenderem sua solidariedade aos animais e à Natureza. Por outro lado, os espíritas detêm forte compromisso com a paz, fator fundamental para a virada multiespécie em sua práxis.

Depois, defendo que não basta uma simples atualização linear e sim uma reformulação da teoria evolutiva espírita. É preciso construir uma que não seja hierárquica, que seja antiantropocêntrica, antiespecista, multiespécie, por muitas boas razões, como tentarei demonstrar. Os espíritas de hoje, diferentemente de Kardec, têm acesso a múltiplos conhecimentos filosóficos, científicos e morais para essa importante mudança.

O lugar dos animais em O Livro dos Espíritos

Primeiramente, é preciso conhecer o contexto para entender o texto de Allan Kardec[6] – a intertextualidade que atravessa qualquer obra e autor. Nesse passo, começo discorrendo sobre a posição dos animais na obra basilar do espiritismo e os seus alinhamentos com algumas noções dominantes do século XIX.

O capítulo XI de O Livro dos Espíritos, denominado “Dos três reinos”, dispõe de quatro tópicos, entre eles “Os animais e o homem”. É neste capítulo que se concentra a maioria das abordagens de Allan Kardec e dos espíritos sobre os animais não-humanos, desde a questão nº 585 até a de nº 613.

Já na questão 585, Allan Kardec e os espíritos consideram que a espécie humana forma uma “quarta classe” superior em relação às classes mineral, vegetal e animal, assim como enfatizam os marcadores da diferença[7] que tornam os humanos superiores. Por exemplo: os animais possuiriam “uma espécie de inteligência instintiva, limitada”, enquanto os homens “domina[m] todas as outras classes por uma inteligência especial”, que “lhe[s] dá a consciência do seu futuro, […] e o conhecimento de Deus”[8](KARDEC, 2013b, p. 281).

Essa questão (e praticamente todo este tópico) reflete os pensamentos hierárquico, antropocêntrico[9], especista[10], teleológico[11], racionalista, essencialista e positivista predominantes no século XIX, com algumas mudanças feitas por Kardec. A biologia da época incorporou a visão aristotélica e cristã[12] da Grande Cadeia do Ser[13], uma estrutura hierárquica do universo onde todos os seres ocupam um lugar fixo e imutável, começando por seres “inferiores” e culminando no ser humano, o qual, por sua vez, estaria abaixo apenas de Deus e dos anjos. Essa noção hierárquica compreende que seres menos complexos existem para servir aos mais complexos, culminando nos humanos como a espécie “mais elevada”. Todavia, nem todos os humanos tinham o mesmo valor. 

Essa hierarquia justificava a dominação não só de animais, mas também rebaixava as mulheres diante dos homens e aproximava as pessoas escravizadas, frequentemente animalizadas/desumanizadas[14], consideradas menos racionais, dos animais. Filósofos como Aristóteles chegaram a defender que certos humanos eram “escravos por natureza”. Dentro dessa estrutura, características como raça, gênero, espécie e status social eram vistas como marcadores naturais de posição, posicionando seres como “inferiores” na escala natural.

O essencialismo, na questão, apresenta-se na atribuição de uma “essência” ou “natureza” fixa e específica a cada ser. Esse tipo de pensamento, também herdado da filosofia grega, especialmente de Platão e Aristóteles, pressupõe que cada espécie ou reino possui uma essência que define sua natureza e função no universo. Na questão, o essencialismo[15] se manifesta na ideia de que cada classe (minerais, vegetais, animais) possui um “destino” fixo e intrínseco: evoluir até alcançar a condição humana, que Kardec considera a “classe superior”. 

Essa visão é incompatível com a teoria científica da evolução, que não se baseia em essências fixas nem em uma direção teleológica/finalista, mas sim em adaptações às condições ambientais, resultando em uma diversidade sem hierarquias ou finalidades intrínsecas. Em Kardec, o essencialismo leva a uma progressão linear e determinista, onde o destino de cada ser é desenvolver suas qualidades espirituais em direção à condição superior humana.

Isso se alinha ao antropocentrismo teleológico, uma concepção hierárquica da natureza geradora de injustiças multiespécies, como destaca Fernando Araújo:

As concepções teleológica e hierárquica da natureza e das relações sociais já levaram, ao longo da história – e desgraçadamente levam ainda –, a diversas afirmações que não se confinam ao estatuto dos não humanos, e que hoje se revelam patentemente absurdas: a ‘ilusão finalista’ de que as marés existem para propiciar a entrada e saída dos navios dos portos, de que os papagaios e os touros só existem para nosso entretenimento, de que as árvores só existem para nos proporcionar sombra e frutos, de que os suínos só existem para nossa alimentação e os cavalos para nosso transporte, de que algumas raças humanas são inferiores e estão predispostas ao serviço das outras, de que as mulheres existem para servir os homens ou para agradar-lhes. Proposições teleologistas que não se distinguem das classificações propostas por Aristóteles, as quais, ao admitirem uma escala de participação na ‘alma racional’ a partir de uma base de teleologismo antropocêntrico e androcêntrico, subalternizavam a condição das mulheres e tornavam concebível a condição de ‘escravo natural’, alguém naturalmente predisposto à servidão, dentro da própria espécie humana


(FERNANDO ARAÚJO, 2003, p. 53).

Kardec incorpora essa estrutura hierárquica ao espiritismo, mas adaptando-a a uma concepção espiritual de evolução, com a diferença de que a hierarquia ora estática agora é evolutiva (mas ainda teleológica/finalista e essencialista), onde o destino dos não-humanos seria chegar na classe superior (humana) após lenta evolução, para adquirir o livre arbítrio, a capacidade de pensar em Deus, o senso moral e outros atributos que lhes dariam os privilégios da condição humana. Para a época, Kardec avança ao apresentar uma proposta progressista, evolutiva, contrária à ideia dominante fixista do criacionismo, dando aos animais condenados à inferioridade e à servidão a possibilidade de evoluirem até o humano, sublimando suas “impurezas” e “imperfeições”, assim como dá ao humano sua condição de animal (algo humilhante para a mentalidade da época), apesar de ver isso como um passado “inferior”, em razão do critério hierárquico e linear.

Vale destacar que o essencialismo evolucionista é também positivista. O positivismo de Auguste Comte promovia uma visão hierárquica e linear do conhecimento, onde cada fase do progresso humano correspondia a uma etapa essencial na evolução da sociedade e do pensamento. Esse modelo trazia um elemento essencialista ao afirmar que cada estado era uma etapa natural e necessária no desenvolvimento humano. Como destaca Signates (2023), “o contexto intelectual europeu do século XIX inteiro se deixou seduzir pelo etapismo nas descrições – e previsões – históricas”. Para Kardec, o essencialismo positivista ajudou a moldar sua visão de progresso espiritual e evolução[16]. Assim como Comte estruturou as ciências em uma hierarquia de complexidade crescente, Kardec concebeu uma evolução espiritual que percorria fases “essenciais” e definidas, à qual os espíritos estariam intrinsecamente destinados.

Desse modo, a questão 585 se alinha à tradição hierárquica, que posiciona os animais num lugar de inferioridade por “carecerem” de atributos eleitos como superiores, especialmente a razão. Sinteticamente, para Aristóteles, o homem é um ser racional, enquanto o restante da criação é irracional e não possui senso de justiça capaz de distinguir o bem do mal, o certo do errado. Ainda que os animais sejam dotados de almas, apenas o homem carrega uma “alma racional”, enquanto os demais vivem em um mundo meramente sensorial.

Nesse ponto, o racionalismo europeu se faz muito presente na obra de Kardec, elemento central na estruturação do especismo socialmente e na hierarquia evolutiva espírita. Kardec e os espíritos consideram a razão como o marcador mais distintivo entre humanos e animais, onde a capacidade racional é vista como o principal critério de dignidade moral e espiritual. O “progresso” do espírito estaria ligado à capacidade de compreender, refletir e evoluir moralmente – qualidades que supostamente os animais não possuiriam (e precisariam desenvolver). Kardec e os espíritos argumentam que os animais operam predominantemente por instinto, por estarem numa fase “incompleta” de sua evolução, enquanto os humanos são capazes de transcender suas condições materiais por meio do pensamento racional. Como aponta Luiz Signates (2023, p. 48), “a ideia de razão é o fundamento do iluminismo. Sem dúvida, este é o principal vínculo entre o espiritismo e a grande movimentação civilizatória da modernidade europeia”. Kardec segue o racionalismo de Renée Descartes (1596-1650) que conecta a razão à existência de Deus e destaca o critério da capacidade de pensar em Deus[17], ideia humanista/racionalista construída em oposição à animalidade.

Esse critério é especista, pois discrimina as capacidades e complexidades dos animais que não se encaixam na definição humana de racionalidade, assim como é excludente de humanos que não atendam aos padrões de racionalidade plena, seja por senilidade, por serem bebês ou por causa de acidentes que lhes diminuem ou tiram a capacidade de raciocinar. Isso é discutido na Ética Animal como “casos marginais”, termo utilizado por Peter Singer e Tom Regan para questionar a moralidade de um sistema que define o valor de um ser com base em capacidades intelectuais, o que leva a exclusões de animais e humanos em situações de vulnerabilidade cognitiva.

Nesse ponto, a obra de Kardec não acompanha os avanços da época, que já dispunha de critérios não racionalistas para defender animais, como os critérios da dor e do sofrimento, que fundamentam boa parte da Ética Animal contemporânea. Apenas para citar dois exemplos, Humphry Primatt (1735 – 1776), nascido em Londres, escreveu a obra “Uma Dissertação acerca do Dever de Misericórdia e o Pecado da Crueldade contra os Animais Brutos”, com argumentos críticos à filosofia moral tradicional por seu antropocentrismo radical no emprego do princípio da igualdade para os animais no que tange à inflição de dor e sofrimento (FELIPE, 2017). Outro exemplo, vem de Jeremy Bentham (1784-1832), que escreveu em 1780 que:

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para se abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? A questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘São capazes de falar?’, mas, sim: ‘Eles são capazes de sofrer?’” 


(BENTHAM, apud SINGER, 2004. p. 8-9, grifo nosso).

Essa concepção racionalista do espiritismo se alinha a visão filosófica clássica, inaugurada por Descartes e radicalizada pelo positivismo de Augusto Comte, onde a racionalidade é vista como um atributo exclusivamente humano e, por isso, um critério legítimo para distinguir seres “superiores” de “inferiores”. Isso estabelece uma hierarquia onde o “valor” de um ser está atrelado à posse de razão, relegando os animais a uma posição de inferioridade moral e espiritual.

É basilar a crítica ao racionalismo e seu papel no especismo pela Ética Animal e áreas afins. Pesquisas em etologia e neurociência comprovam que muitas espécies possuem consciência, formas de inteligência, comunicação e emoções complexas, o que refuta a visão de que a racionalidade humana é a única forma de valor moral. Aliás, como veremos nos Estudos Multiespécies, para muitas comunidades indígenas[18], o valor moral da Natureza sequer passa pelos critérios de racionalidade e senciência.

Ao privilegiar o racionalismo, Kardec incorpora um critério reducionista, excludente e especista. No entanto, era muito difícil para Kardec escapar disso, dados os limites estruturais de sua época. O que é inaceitável é isso permanecer incontestado pela maioria dos espíritas atuais.

Outra questão, a 591, também evidencia a hierarquia espírita, quando os espíritos dizem a Kardec que, nos mundos superiores, “os animais [são] sempre animais e os homens sempre homens”[19] (KARDEC, 2013b, p. 283). Para Aristóteles, como vimos, cada forma ocupa uma posição determinada dentro de uma hierarquia natural. Nessa concepção, tudo que estivesse abaixo do homem foi criado para servi-lo.

Na questão 592, Kardec destaca que é difícil estabelecer uma linha de demarcação entre homens e animais, pois alguns animais mostram “notória superioridade sobre certos homens”[20]. Todavia, os espíritos que responderam a esta questão rechaçam essa escapada de Kardec do antropocentrismo, afirmando que “o homem é um ser à parte. […] ao seu Espírito está assinado um destino que só ele pode compreender. […] Reconhecei o homem pela faculdade de pensar em Deus” (KARDEC, 2013b, p. 283).

Na questão 595, os espíritos se afastam de Descartes, que com sua teoria animal-máquina afirmou que os humanos possuem alma, e são capazes de pensamento e linguagem, e os animais são máquinas, autômatos. Diferentemente, os espíritos afirmam que “os animais não são simples máquinas” (KARDEC, 2013b, p. 285). Além disso, nas questões 594 e 594-a, afirmam que os animais “dizem uns aos outros muito mais coisas do que imaginais” e que “o homem não goza exclusivamente do privilégio da linguagem” (KARDEC, 2013b, p. 284). No entanto, tudo limitado às necessidades materiais, inferiores, incomparáveis àquelas dos seres humanos.

Na questão 597, a inferiorização é também evidente. Os espíritos afirmam que há nos animais um princípio independente da matéria. Kardec, pergunta se este princípio seria “uma alma semelhante à do homem”,e obtém a resposta de que é “inferior à do homem” e que “há entre a alma dos animais e a do homem distância equivalente à que medeia entre a alma do homem e Deus” (KARDEC, 2013b, p. 285).

A demarcação da inferioridade animal segue até o final do capítulo. Tudo nos animais, o livre arbítrio, a inteligência, a alma, a linguagem, são inferiores à do homem e/ou existem apenas para necessidades materiais. Um muro quase intransponível, que legitima a indiferença moral com os animais.

São notórios, também, alinhamentos com a tradição judaico-cristã, especialmente com S. Agostinho e T. de Aquino, que demarcaram a supremacia do homem e o colocaram, somente ele, em comunhão com o divino, num tipo de especismo religioso. Para S. Agostinho, “[…] existe alguma coisa que, não existindo na alma deles, existe na nossa, e por isso acham-se submetidos a nós”. (SANTO AGOSTINHO, 1995, p. 44). Para T. de Aquino, “o homem está no vértice de uma pirâmide natural, em que os minerais (na base) servem aos vegetais, os vegetais servem aos animais que, por sua vez, e em conjunto com os demais seres, servem ao Homem (MILARÉ, 2004, p. 41).

Assim, O Livro dos Espíritos parece não estimular o espírita a atuar socialmente para superar o especismo – o que é um sério problema, pois o especismo é uma opressão estrutural que opera associada a outras opressões, como racismo e sexismo, e prejudica a busca pela paz almejada pelos espíritas.

Por outro lado, O Livro dos Espíritos não prescreve maus-tratos aos animais, mas, ao considerá-los inferiores, a indiferença moral dos espíritas com os animais é esperada, como acontece majoritariamente no movimento espírita, onde a questão animal é a última da fila. Por isso a importância de superar a hierarquia das espécies.

Isso se mostra expresso ao final de O Livro dos Espíritos, na parte Das leis morais, onde constam afirmações críticas à exploração animal (apesar de presas ao critério da inferioridade e impureza animal), como por exemplo nas questões 724, 729, 734 e 735, na chamada Lei de destruição.

724. Será meritório abster-se o homem da alimentação animal, ou de outra qualquer, por expiação? “Sim, se praticar essa privação em benefício dos outros. […]”

729. Se a regeneração dos seres faz necessária a destruição, por que os cerca a Natureza de meios de preservação e conservação? “A fim de que a destruição não se dê antes de tempo. Toda destruição antecipada obsta ao desenvolvimento do princípio inteligente. […].”

734. Em seu estado atual, tem o homem direito ilimitado de destruição sobre os animais? “Tal direito se acha regulado pela necessidade que ele tem de prover ao seu sustento e à sua segurança. O abuso jamais constituiu direito.”

735. Que se deve pensar da destruição, quando ultrapassa os limites que as necessidades e a segurança traçam? Da caça, por exemplo, quando não objetiva senão o prazer de destruir sem utilidade? “Predominância da bestialidade sobre a natureza espiritual. […].”

O Livro dos Espíritos

Essa ambiguidade ganha força no livro A gênese, publicada em 1868, 10 anos após O Livro dos Espíritos e próximo do seu falecimento (1869), quando Kardec faz enfática crítica ao antropocentrismo: “o orgulho levou o homem a dizer que todos os animais foram criados por sua causa e para satisfação de suas necessidades. […] Deus, decerto, não as criou por simples capricho da sua vontade […]” (KARDEC, 2013a, p. 38). Trata-se de um posicionamento do próprio Kardec, demonstrando considerável ambiguidade na obra espírita que abre campo para estudos e reformulações espíritas a respeito da questão animal e da hierarquia que os rebaixa.

Aliás, mesmo que não houvesse esta ambiguidade, Kardec deixou claro o compromisso do espiritismo com a ciência e a visão progressista: Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado. Se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria […](KARDEC, 2013a, p. 42). Isso oferece aos espíritas um caminho para a superação da hierarquia e a inserção do espiritismo no debate e movimentação social pela consideração moral e reconhecimento de direitos aos animais e ecossistemas.

Um problema é que, após Kardec, o espiritismo se tornou uma religião conservadora e dogmática, passando longe das descobertas científicas sobre a sociedade (as ciências sociais na época de Kardec eram embrionárias). A interpretação espírita dominante se tornou o que Luiz Signates (2019, p. 139) denominou de “individualismo moralista”, perspectiva que “acredita piamente que qualquer mudança autêntica na sociedade só se dá se for antecedida de uma transformação no interior do indivíduo”. Trata-se de uma concepção equivocada da sociedade, que prejudica a compreensão de como o especismo funciona socialmente.[21]

Assim, por essa análise, busquei demonstrar as premissas que estruturaram a hierarquia antropocêntrica em O Livro dos Espíritos, refletindo as teorias dominantes daquele contexto. No entanto, essas noções predominam ainda hoje nos espiritismos[22], mais de 150 anos após O Livro dos Espíritos, sendo reproduzidas diariamente nos púlpitos e livros espíritas.

Claro que houve mudanças mais favoráveis aos animais pós Kardec, como nas obras de Chico Xavier, mas mesmo os textos espíritas mais sensíveis aos animais raramente questionam a hierarquia das espécies, tratando os animais, por exemplo, como “irmãos menores”. Hierarquia compreensível no contexto de Allan Kardec, porém, insustentável face aos conhecimentos contemporâneos. Além disso, seguem o modo “individualista moralista”, com pouco ou nenhum estímulo à transformação social, presos à reforma íntima, que pouco afeta as estruturas das Injustiças Multiespécies.

Por fim, a hierarquia das espécies é o princípio organizador da opressão animal. Os bilhões de animais abatidos[23] anualmente pelas “indústrias da morte”[24] são sustentados pela ideologia da supremacia humana e por práticas materiais de exploração animal que a retroalimentam. A criação de um “outro inferior” é uma poderosa ferramenta de objetificação, exclusão e opressão legitimada de humanos e não-humanos. Insistir nessa categoria é colocar a fé acima da ética, da justiça, da Solidariedade Multiespécie. Como enfatizei na minha tese:

A institucionalização industrial de confinamento de animais funciona na esteira da dominação e da hierarquia entre o dominador/superior e o dominado/inferior, relação em que estes últimos detêm apenas um valor econômico funcional e não inerente, por meio do capitalismo e sua razão calculista que transforma animais sencientes em mercadorias para obter lucro em cima da exploração do trabalhador assalariado, dos animais e ecossistemas.


(LUDOLF, 2024, p. 102, grifo nosso).

Em termos científicos, não há nada de superior ou inferior entre as espécies: o que há são habilidades diversas evoluídas frente às necessidades de seus contextos ambientais. Se fossemos disputar habilidades com as demais espécies, perderíamos de lavada para muitas. Não faz sentido algum essa disputa de quem é superior ou inferior!

Apesar disso, características consideradas exclusivas dos humanos têm sido colocadas em xeque pelas diversas áreas de pesquisa sobre os animais, que neles vêm constatando capacidades como autoconsciência, comunicação complexa, luto, memória de longo prazo, planejamento etc. No entanto, para além disso, a hierarquização de capacidades entre as espécies é argumento irrelevante para a consideração moral dos animais e reconhecimento de direitos, até mesmo espirituais. 

O argumento da presença de algo no humano que o torna privilegiado em relação às outras milhões de espécies, na atualidade, é bastante frágil, para dizer o mínimo, praticamente só sustentado pela fé – mas por um tipo de fé sem compromisso com a ciência, o que não se coaduna com a proposta do espiritismo de fé raciocinada.  

Insistir na hierarquia das espécies é negar o caráter progressista do espiritismo, é se apegar mais à letra e, acima disso, insistir numa categoria historicamente produtora de violências humanas e não-humanas, pois o modelo ocidental hierárquico de progresso linear do “inferior” para o “superior” produziu não só especismo como também racismo, inclusive contra o nosso povo (vide o colonialismo).

Por isso, não basta um simples alargamento da hierarquia espírita para acomodar os animais, é necessária uma reformulação conceitual que passe necessariamente pelo abandono da hierarquia intra e interespécies. A seguir, vou abordar como a hierarquia das espécies produziu violência e opressão histórica de humanos e não-humanos.

Repensando a divisão humano-animal

O colonialismo do ocidente impôs um sistema hierárquico monoespécie baseado em divisões como natureza/cultura[25] e humano/animal, rebaixando radicalmente as espécies companheiras[26] e privilegiando o humano, mas não qualquer humano: “o homem, branco, europeu, proprietário, racional, tecnológico e dominador da Natureza e dos animais” (CARDOSO, 2020, p. 94). Trata-se de um sistema de Injustiça Multiespécie que empurra para abaixo da linha da humanidade humanos e não-humanos, submetidos a controle, domínio e exploração.

A gravidade disso é bem diagnosticada por Maneesha Deckha, quando esta aponta como o castigo em corpos animais é percebido como violência legitimada por conta do status não-humano da espécie envolvida. Resulta que, se conseguimos convencer o senso comum que certos grupos não se encaixam no “humano” – são irracionais, têm valores “bárbaros”, têm sistemas de crenças “inferiores”, comportam-se “como animais”, entre outros – legitimamos a ação contra esses grupos em formas que seriam, de outra maneira, consideradas extremamente inapropriadas e criminosas” (DECKHA, apud KO, 2015, p. 45).

A divisão (binária) humano-animal posicionou “o humano” e “o animal” em oposição, como se houvesse uma “hierarquia natural” onde o “humano” é superior e o “animal” inferior. De um lado, o Sujeito por excelência é “o humano” e, do outro, os animais relegados à subordinação, pois seriam menos, só animais. Foi contra o animal que a humanidade foi definida. E esse humanismo excludente segue incontestado nos espiritismos desde Allan Kardec.

Se não bastasse, essa categorização não rebaixa só os não-humanos. Como destaca Jailson Rocha (2021, p.887): “às entidades não humanas – incluem-se aqui os humanos jogados abaixo da linha da humanidade como condenados da terra (FANON, 1968)”. Essa diferenciação foi e ainda é essencial para a estruturação do modus moderno-colonial de animalização de humanos não-desejáveis.“Mulheres, Negros, Indígenas, Identidades de gênero inconformes, são marcados a ferro pelos marcadores sociais da diferença. Párias animalizados” (ROCHA, 2020, p. 21).

Por outro lado, há vasta produção crítica feita pelas teorias feministas (e ecofeministas), decoloniais e marxiana, que identificam um problema em comum: todas elas percebem as estruturas dicotômicas hierárquicas opressivas que operam nas sociedades ocidentais modernas e que moldam a lógica do pensamento moderno ocidental e identificam que tanto os humanos quanto os outros animais estão emaranhados nessa lógica categorial que legitima a exploração de uns sobre outros (CARDOSO, 2020, p. 83, grifo nosso).

Ecofeministas como Marti Kheel e Daniela Rosendo e autoras feministas-animalistas como Carol Adams, “identificam a opressão de mulheres e animais nas estruturas conceituais e valorativas da Modernidade capitalista e da sua racionalidade instrumental que categorizam, dividem e hierarquizam o mundo” (CARDOSO, 2020, p. 82), como masculino x feminino, razão x emoção, humano x natureza, humano x animal, civilizado x primitivo, superior x inferior, dominador x dominado etc.

Val Plumwood e Karen Warren decifram esses dualismos opressivos tão presentes na cultura ocidental: “Uma rede formada por diferentes dualismos está na base da cultura e do cenário político ocidental e permite reconhecer como as formas de opressão estão conectadas entre si” (ROSENDO, 2024, p. 181).

Karen Warren, apresenta três características desse sistema: i) o pensamento hierárquico-valorativo que posiciona os indivíduos hierarquicamente segundo distribuição de valores, status, prestígio; ii) os dualismos valorativos que estabelecem pares disjuntivos, opostos e exclusivos, atribuindo valor positivo a um e negativo a outro; e a iii) lógica da dominação que fornece uma estrutura argumentativa para justificar a subordinação. Por estas características, reproduz-se a subordinação e a dominação das mulheres e dos animais. Assim, “para romper com a dominação masculina, é necessário romper também com a estrutura conceitual-valorativa que hierarquiza o mundo e com as instituições que a reproduzem” (CARDOSO, 2020, p. 88).

A crítica marxista permite “localizar as causas da ruptura do humano com a Natureza, na Modernidade, buscando resgatar o momento e as condições históricas em que o humano se separou da Natureza (e dos animais) e colocou-se acima dela”. A cisão moderna humano-natureza, é uma cisão liberal. “A expulsão da Natureza é um fenômeno do capitalismo” (CARDOSO, 2020, p. 91).

Para essa dominação em larga escala, capitalismo e colonialismo utilizaram de invasão, cercamento, divisão da terra, constituição da propriedade privada, escravidão, expulsão de povos originários de suas terras, e da animalização. Com a natureza separada do humano e transformada em mercadoria, esses povos foram e ainda são (aos olhos dos colonizadores-capitalistas) considerados “primitivos” e precisam “progredir”.

A matriz colonial teve como um dos fundamentos a “diferenciação ontológica entre humanidade e animalidade. Essa lógica rebaixa a animalidade, excepcionaliza o humano do mundo animal e objetifica os outros animais” (LUDOLF, 2024, p. 259). Na história colonial do Brasil, o rebaixamento da animalidade foi estratégico para a dominação do território. “Tanto colonialismo quanto capitalismo estabeleceram um tipo de organização sociorracial dependentes do especismo” (OLIVEIRA, 2021, p. 70). A usurpação territorial do Brasil funcionou com exploração e extermínio dos corpos indígenas, animais e escravidão de negros/as, rebaixando ambos abaixo do humano. No Brasil[27], a opressão animal é “consequência direta da constituição colonial-capitalista-racista-patriarcal-especista do mundo moderno” (LUDOLF, 2024, p. 13).

Com isso, quero destacar que a dicotomia humano-animal (que subordina animais e grupos humanos marginalizados àqueles considerados totalmente humanos) presente nas obras espíritas, é veículo de diferenças sociais como de gênero, raça e cultura, decifrada por vasta literatura científica: “As diferenças animais e intra-humanas são construídas socialmente por meio dessas narrativas baseadas nas normas e valores das dicotomias modernistas” (DECKHA, 2012, p. 220).

Portanto, importante que os espíritas dialoguem com os Estudos Multiespécies e afins, para aprender a prestar atenção às diversas formas de vida e seus entrelaçamentos e contribuir com a construção de uma sociedade mais-que-humana, cuja consideração moral e reconhecimento de direitos não se restrinja a critérios hierárquicos.

Estudos Multiespécies

Os seres, sejam quais forem, existem dentro de comunidades multiespécies e experienciam o mundo de forma múltipla e diversa. O padrão monoespecífico de ser, estar e perceber o mundo é uma ilusão. Prestar atenção à vida compartilhada com as espécies companheiras, que são também atores e autores do mundo, pode nos permitir outras noções sobre sociedade, política, direito, ciência, arte e espiritualidade, ao invés da autoria humana solitária e exclusivista separada e acima da natureza.

É necessário repensar o humano. Perceber que sempre fomos mais-que-humanos, co-existimos, co-evoluímos e somos co-construídos por uma pluralidade de espécies companheiras. Como destaca Anna Tsing (2015a, p. 184), a natureza humana é uma relação entre espécies.

Os Estudos Multiespécies problematizam a concepção tradicional de humanidade monoespecífica, para reconhecer que vidas humanas e não-humanas (inclusive espirituais) emergem e se constroem em comunidades multiespécies, interdependentes. “Histórias apenas-humanas não servirão a ninguém em uma época modelada pelo agravamento e fortalecimento mútuo de processos de destruição biossocial – da extinção em massa às mudanças climáticas. (VAN DOOREN, 2016, p. 41).

Os Estudos Multiespécies envolvem áreas como antropologia, biologia, filosofia, geografia, estudos culturais e sociologia. Em especial, a etnologia indígena tem sido fundamental para esta área, que “se envolve em longas histórias de um pensamento de relações e agências a partir dos povos indígenas” (VAN DOOREN, 2016, p. 41).

A esse respeito, Philippe Descola, antropólogo francês, narra suas experiências na comunidade indígena dos Achuar, que desconhecem as distinções entre natureza e cultura e entre humanos e não-humanos, tão evidentes para o ocidente: Em outras palavras, meu senso comum não tinha nada a ver com o deles. Quando observávamos as plantas e os animais, não víamos a mesma coisa (DESCOLA, 2016, p. 14).

O termo espécies nos Estudos Multiespécies expressa qualquer reunião relevante de um conjunto de parentes. No caso, o termo não pode ser reduzido à taxonomia científica. Por multiespécie se compreende o complexo de relações estabelecidas pela multidão de entes que habitam o mundo e o imaginário humano, como plantas, microrganismos, animais humanos, não-humanos, divindades, espíritos etc.

Trata-se de uma lógica co-evolutiva, com toda a sua diversidade resplandecente de relações, que torna as existências possíveis por meio desse patrimônio comum, desse entrelaçamento. Quem somos só é possível a partir do encontro. Assim, o termo multiespécie aponta o esgotamento do aparato conceitual baseado no exclusivismo e superioridade humana e na separação entre natureza e cultura.

O que está em jogo nos âmbitos epistemológico, político e ético é aprender a ser atento às diversas formas de vida. Nessa direção, os estudiosos multiespécies propõem as “artes de atentividade” para prestar atenção aos outros, mas não a um outro exteriorizado e inferiorizado. A ética no sentido multiespécie é relacional. Estamos “agindo como se tudo fosse importante (VAN DOOREN, 2016, p. 51). As artes de atentividade envolvem aprender como se poderia melhor responder ao outro e trabalhar para o florescimento mútuo. Aqui, os critérios antropocêntricos para se considerar o outro, como capacidade de raciocinar e sentir são dispensáveis.

Como pergunta Eliana Brum[28], que outras histórias (sobre sociedade, política, direito, ciência ou arte) seriam possíveis se em vez da autoria humana solitária, reconhecêssemos que animais, plantas, fungos e outros seres não-humanos também são atores e autores da vida? Pergunto, que outras narrativas espíritas teríamos?

Nesse sentido, os estudiosos multiespécies contribuem para uma ética relacional e, portanto, antiantropocêntrica. Nesse passo, “como devemos repensar ‘o humano’ após o estouro da bolha antropocêntrica?(VAN DOOREN, 2016, p. 41). Como podemos repensar o espiritismo sem o critério da hierarquia?

Agência e resistência animal

Nessa seção, destaco como os outros animais resistem aos seus exploradores humanos. São décadas de trabalhos científicos comprovando as cognições, emoções e sociabilidades dos animais, que têm resultado no reconhecimento de que os animais possuem e exercem agência, não somente os humanos.

Por sua existência, por suas atividades, os não humanos também são atores do mundo, que se revelam “como obstáculos”, define Bruno Latour, “como aquilo que suspende o domínio, que perturba a dominação” (FERDINAND, 2022, p. 250, grifo nosso).

A agência dos animais é a capacidade de fazer escolhas, agir, resistir e influenciar o mundo ao seu redor, diferente da noção dominante que os transforma em seres passivos. É um tema transdisciplinar e insurgente que ajuda a repensar a história e levar a sério o estatuto além-do-humano (ROCHA, 2020, p. 887).

Mesmo conhecidos autores/as animalistas ocultam a agência animal: “Certas correntes nortistas da Ética Animal (SINGER, 2010) representam os animais não humanos como pacientes morais em vez de agentes atuantes na vida social” (ROCHA, 2021, p. 901). Ainda que busquem retirá-los do estatuto de coisa, apenas alargam essa condição, não a subvertem. Essa condição de passividade, de necessidade da tutela do humano para que o animal “evolua” é muito presente nos textos espíritas.

Felipe Süssekind critica esse reducionismo da natureza como pano de fundo para as ações humanas, afirmando que se trata de uma máquina que reduz os viventes desprovidos de humanidade à condição de objetos ou de instrumentos. A categoria do animal funciona, neste caso, como uma categoria em negativo: […] aquilo que está excluído da esfera da vida política” (SUSSEKIND, 2018, p.163).

Nesse passo, Süssekind recusa a máquina colonialista: desprovidos de voz, de fala articulada, de razão, os “selvagens” foram convertidos em “primitivos” e, como tais, tratados ora como coisas, ora como máquinas produtivas(SUSSEKIND, 2018, p. 166). Tal recusa abre novas possibilidades de leitura e escrita não hierárquicas.

A agência animal perturba a fronteira das espécies e visibiliza as táticas (conceituais e materiais) da indústria para naturalizar o especismo. Darren Chang (2022), ao examinar a caça comercial de focas no Canadá, aponta as estratégias de ocultação da indústria e como os vídeos publicados das focas resistindo aos massacres impactaram a indústria e criaram oportunidades para construir solidariedades com os animais.

Sarat Colling (2018), analisou diversos episódios de resistência animal que ocorrem todos os dias pelo mundo: centenas de animais escapam de matadouros, granjas, mercados, caminhões, confinamentos etc: “Ao transgredir fronteiras, escapar do confinamento e lutar contra os opressores, outros animais demonstram intencionalidade e resistência” (COLLING, 2018, p. 24).

O historiador Jason Hribal, critica a historiografia dos estudos animais por ignorar ou minimizar sua agência e resistência, por adotar uma perspectiva de cima, e desenvolve uma metodologia de baixo. Ele cita vários autores/as: “os animais não são vistos como agentes. Eles não são ativos, como trabalhadores, prisioneiros ou resistentes. Em vez disso, os animais são apresentados como personagens estáticos” que foram usados, exibidos e abusados por humanos. “Eles emergem como objetos – vazios de qualquer substância real” (HRIBAL, 2007, p. 102). Essa é uma perspectiva de cima.

Assim, o autor propõe uma perspectiva metodológica de baixo, que reconhece os animais como agentes que negociaram os limites da sua exploração e se aliaram a grupos humanos contra outras formas de exploração. “A história vista de baixo não é uma teoria. É uma metodologia ou forma de análise”(HRIBAL, 2007, p. 103).

Hribal cita exemplos históricos de cavalos, mulas e bois que se recusavam a obedecer, atrasavam, quebravam equipamentos, fugiam, “se recusavam a comer, beber, se reproduzir, trabalhar, se mover, se levantar, se deitar, abrir os olhos, fechar a boca, respirar” (HRIBAL, 2007, p. 104). Desse modo, as formas cotidianas de resistência não foram historicamente limitadas à humanidade (HRIBAL, 2007, p. 103).

Ele identifica alguns tipos de ofertas feitas pelos humanos: como melhor tratamento, alimentação e substituição por outras formas de energia, as quais não foram baseadas somente no custo-benefício, mas na capacidade dos animais de recusar/aceitar o trabalho, como por exemplo a substituição por motor a combustível. Ocorre que os cavalos e mulas demoravam cerca de três anos para aceitar puxar as carroças, bondes e ônibus que encheram as ruas do século XIX.

Nunca foi que os cavalos não pudessem trabalhar mais, mais rápido ou por mais tempo. Em vez disso, o fato é que eles […] tinham a capacidade consciente de se recusar a fazê-lo. Finalmente, as empresas movidas a cavalos, e todas aquelas que dependem da força dos cavalos, já não podiam tratar os seus empregados com impunidade e espremer os lucros de qualquer maneira que quisessem (HRIBAL, 2007, p. 105, tradução nossa, grifo nosso).

Foi por meio desta resistência combinada entre cavalos, mulas e trabalhadores humanos (desta aliança interespécies) contra a elite e seu sistema opressor, “que a transição histórica da força animal para a energia a vapor ocorreu. Isso não foi progresso; isso foi o fim das negociações” (HRIBAL, 2007, p. 109).

Hribal narra também que a resistência animal influenciou grupos humanos, que viram pontos em comum em suas lutas contra a exploração. “A origem dos direitos dos animais e do vegetarianismo reside na história deste trabalho e resistência(HRIBAL, 2007, p. 105). O autor menciona pitagóricos que defendiam animais no século XVII na Inglaterra e estabeleceram “uma aliança radical entre humanos e outros animais” (HRIBAL, 2007, p. 106), assim como os Quakers, grupo religioso baseado na compaixão pelos animais e a natureza e que se opuseram à escravidão, à caça e à crueldade animal. Fico imaginando os espíritas, tão dedicados à solidariedade, superando o especismo em sua teoria e prática e se aliando aos animais.

Assim, Hribal desafia a perspectiva dominante de cima que vê os animais como objetos ou seres passivos e propõe uma perspectiva diferente, de baixo, onde os animais emergem como agentes e promovem transformações sociais com alianças humanas. Isso afeta a fronteira das espécies e fortalece mudanças sociais. Desse modo, considero que os Estudos Multiespécies ajudam a repensar a teoria espírita que, desde Allan Kardec, tem na superioridade humana um de seus pilares.

Conclusões 

Identifiquei que a teoria de evolução espírita desenvolvida por Allan Kardec refletiu as noções hierárquica-antropocêntrica-especista-teleológica-racionalista-essencialista-positivista típicas do contexto europeu do século XIX, e que seguem sendo reproduzidas acriticamente pelos espíritas atuais, mesmo diante da vasta produção científica crítica a estas noções. 

Defendi que, por questão de ética e justiça, é preciso reformular a teoria evolutiva espírita e não simplesmente alargá-la, pois as noções ora criticadas participam de opressões históricas a humanos e não-humanos e são insustentáveis cientificamente.

Para tanto, apresentei argumentos de áreas científicas críticas ao especismo, como Estudos Multiespécies, Ética Animal, Estudos Críticos Animais, Estudos Ecofeministas, Decoloniais e Marxianos, assim como destaquei certa ambiguidade, pois apesar da presença marcante da hierarquia das espécies em O Livro dos Espíritos (1860), no livro A Gênese (1868) Allan Kardec fez enfática crítica ao antropocentrismo, apontando caminhos aos espíritas para essa necessária reformulação, aliado ao compromisso expresso na mesma obra com a ciência e o caráter progressista. Esse diálogo poderia ajudar a inserir o espiritismo na movimentação pela consideração moral e reconhecimento de direitos às espécies companheiras.

Proponho que os espíritas desenvolvam um projeto ético-político-espiritual sem fronteiras entre as espécies, contribuindo para a construção de uma sociedade fraterna e justa não só para os humanos. Para tanto, é importante se debruçar sobre perspectivas outras, como as indígenas, que mobilizam formas diversas de perceber e se relacionar espiritualmente/materialmente com os animais e ecossistemas.

Independentemente desta reformulação da teoria espírita, práticas de respeito aos animais precisam ser implemenadas nos espaços espíritas.

REFERÊNCIAS

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NOTAS DE RODAPÉ


[1] Costumo escrever na primeira pessoa do singular com base nos Estudos Decoloniais e nos Estudos Críticos Animais. Na linha da “desobediência epistêmica” (Mignolo, 2011), questiono a neutralidade científica típica da ciência moderna que exige do/a pesquisador/a isenção subjetiva e neutralidade objetiva, afastando juízos valorativos e posicionamentos políticos da esfera do conhecimento, e que significa, com base no princípio da “politização da investigação acadêmica” (Best, 2007) dos Estudos Críticos Animais, desconstruir o mito da racionalidade do investigador e o mito da neutralidade científica. Assim, sigo no sentido crítico da suposta universalidade do discurso científico, pois estamos atravessados e reproduzimos interesses sociais e políticos, consciente ou inconscientemente. Por isso, não me escondo atrás do texto: a investigação aqui é política e voltada para o fim das Injustiças Multiespécies.

[2] Alguns antiespecistas evitam usar o termo não-humanos pois ele reforça a centralidade do humano, já outros entendem que é útil para enfatizar que humanos também são animais, desconstruindo a falsa dicotomia entre “humano” e “animal”, e por ser um termo de fácil compreensão. Tenho evitado e utilizado outros, como espécies companheiras, animais mais-que-humanos e outros animais, na tentativa de fugir da lógica hierárquica e da generalização excessiva, pois ao tratar todas as espécies como “não humanas” pode-se ofuscar a diversidade e a individualidade de cada indivíduo, reduzindo a complexidade de suas existências a uma contraposição ao humano.

[3] Devido ao domínio do espiritismo conservador, geralmente os espíritas se mantem dentro das quatro linhas das interpretações espíritas tradicionais. Por um tempo isso aconteceu comigo, depois, me libertei. Em 2022 assumi que não me considero mais espírita, senão um pesquisador do espiritismo. Mantenho grande interesse e profundo respeito pelo espiritismo, assim como participação ativa no movimento espírita.

[4] Isso, por si só, já seria alguma coisa, pois se esperaria dos espíritas o abandono gradativo de práticas que prejudicam os animais não-humanos, como a adoção do vegetarianismo nos centros espíritas.

[5] Por se tratar de um artigo com limite de laudas, a explicação de cada característica dessa no pensamento espírita será modesta e rasa. Espero aprofundar mais num livro próprio. 

[6] A neutralidade do investigador e da ciência é um mito já derrubado por muitas áreas, especialmente a dos estudos pós-coloniais, que demonstram que toda investigação e produção de obras é política, cada indivíduo detém uma posicionalidade interativa no mundo, um lugar de enunciação com inerentes condicionantes. A desobediência epistêmica desenvolvida por Walter D. Mignolo (2009), por exemplo, significa desvincular-se da ilusão da epistemologia do “ponto zero”. Allan Kardec não produziu o espiritismo a partir de um “ponto zero”. Não há uma “revelação” de um “ponto zero”. Nada se faz a partir de um “ponto zero”. Os lugares de enunciação dos autores espíritas, como Allan Kardec, são atravessados por questões estruturais de classe, raça, gênero etc. As obras espíritas de Kardec não são impermeáveis ao seu contexto social. Como se diz, todo autor é filho do seu tempo.

[7] No campo dos estudos sociais, “marcadores da diferença” são características usadas para estabelecer distinções entre grupos sociais para fundamentar relações de poder. Marcadores como raça, gênero, classe e espécie foram e ainda são usados para justificar hierarquias e exclusões. São construções sociais constituídas em oposição a um “outro” que se considera inferior ou subalterno, criando hierarquias. No caso, a ideia ocidental de humano foi constituída contra o animal, projetando-se características negativas a estes como instinto, irracional, sujo, promíscuo etc. “para distinguir e enfatizar aquilo que queremos reivindicar para nós mesmos (racional, autoconsciente, ordeiro, lógico, moderado, deliberativo, altruísta etc.) como exclusivamente humano” (DECKHA, 2012, p. 218).

[8] Esse atributo do “conhecimento de Deus” como demarcador da superioridade humana não é só especista, mas também preconceituoso com quem não crê em Deus e os que creem num Deus não cristão.

[9] Segundo Oscar Horta (2022, p. 185), “qualquer posição que assuma que pertencer ao gênero Homo é um critério para favorecer alguém será antropocêntrica”, assim, oantropocentrismo “é o tratamento ou consideração desfavorável daqueles que não são membros da espécie humana”. Ademais, para o referido autor, o antropocentrismo é uma forma de especismo, o que ele chama de especismo-antropocêntrico.

[10] Oscar Horta (2022, p. 164), define o especismo como “a discriminação a quem não pertence a uma certa espécie”. Diferentemente, Fabio Oliveira (2021) opta pelo uso do termo “opressão” em detrimento de “discriminação” para compreender o especismo, definindo-o como “a opressão sofrida por quem não pertence a uma certa espécie”. Tal definição busca “estabelecer relações de interdependência entre o especismo e outros ismos de dominação”, bem como, localizar “o especismo como parte constitutiva das injustiças sociais”, para o qual dá o nome de “especismo estrutural”. É dessa maneira que compreendo o especismo, conforme desenvolvi mais na minha tese doutoral.

[11] Teleológico significa que tudo na natureza tem um propósito específico, um destino pré-determinado.

[12] A cultura ocidental tem ao menos dois pilares fundamentais: a fusão da tradição grega com a judaico-cristã, que, quando se trata da questão animal, são marcadas pelos princípios da distinção e do domínio.

[13] O legado grego é marcado pelo progressivo distanciamento do homem com os animais e o mundo natural, faz parte das premissas culturais da consolidação do especismo. Se Sócrates e Platão são considerados em O Evangelho Segundo o Espiritismo como precursores do Espiritismo, é preciso ter atenção pois esses autores, apesar da sua importância, defenderam que o propósito dos animais era o de servir aos homens, constituindo o chamado “antropocentrismo teleológico” ou finalista, tão presente na obra de Kardec.

[14] A animalização ocorre quando se busca desumanizar os indivíduos, tratando-os como se fossem animais (considerados inferiores), negando-lhes atributos considerados exclusivos do “humano,” como a racionalidade, o senso moral ou a autonomia. Isso é frequentemente usado em discursos que promovem violência, discriminação e opressão contra grupos sociais específicos, como negros, indígenas, mulheres e LGBT+. Notadamente, a animalização se relaciona com o especismo, pois rebaixa a animalidade radicalmente como algo inferior e detrimentoso, reproduzindo hierarquias.

[15] Importante destacar que o essencialismo foi (e continua sendo) prejudicial às mulheres, pois sustenta a ideia de que homens e mulheres têm essências naturais fixas que determinam suas características, comportamentos e papéis sociais. Esse pensamento estabelece uma visão rígida das “naturezas” masculina e feminina, reforçando estereótipos e limitando as possibilidades de atuação das mulheres na sociedade. A opressão das mulheres e dos animais está ligada ao modelo patriarcal de sociedade, que os coloca como inferiores e subalternos aos homens. Como aponta Alicia Puleo (2011) e outras ecofeministas, o antropocentrismo é androantropocentrismo, pois além de colocar o humano no centro, ao mesmo tempo valoriza características tipicamente associadas ao gênero masculino. A filosofia grega, tão presente na obra de Kardec, tem esse legado, como aponta Daniel B. Lourenço (2008, p. 33): “as mulheres gregas eram tidas como não tão perfeitas e, eventualmente, não conceberiam o senso do que era justo ou não. Deste modo, estariam fadadas a ocupar um degrau abaixo na hierarquia aristotélica”. Como defendo e defenderei neste artigo, o especismo age associado a outras formas de violência e opressão, como racismo, sexismo etc. Por isso, a luta deve ser contra todas as formas de opressão.

[16] Há muita semelhança da obra de Kardec com o positivismo, com a diferença de que Comte defendia uma ciência sem especulação metafísica, contrário de Kardec que une a ideia de Deus à ciência.

[17] Aqui o antropocentrismo se faz gritante, pois se busca atribuir aos animais um interesse da espécie humana (não de todos os humanos): a de pensar/crer em Deus. Trata-se de um tipo de especismo espiritual ou religioso ambíguo, semelhante à intolerância religiosa praticada contra os ateus, só que contra os animais. No caso, a ambiguidade se mostra na negativa histórica aos animais de contato com o divino, assim como no determinismo desse contato apenas quando se tornar humano. Assim, o destino determinístico dos animais é ser um humano crente em Deus e, no caso, no Deus cristão.

[18] Como defendo em minha tese de doutorado, apesar das cosmovisões indígenas serem mais sensíveis à Natureza para defender os animais, devido à Colonialidade do Saber, o movimento animalista (assim como os espíritas) se baseia em autores do Norte Global para fundamentar os seus argumentos, silenciando a vasta experiência indígena local que dispõe de relações não-dicotômicas e não-antropocêntricas com os animais e o mundo natural.

[19] Na 1ª edição de O Livro dos Espíritos (1857), Allan Kardec e os espíritos afirmaram que o homem não evoluiu dos animais. Esse entendimento muda na edição definitiva de O Livro dos Espíritos (1860).

[20] Essa escapada de Kardec é importante, pois a distinção entre humanos e animais da tradição ocidental (platônica-aristotélica e judaico-cristã) eram muito fortes à sua época, radicalizada pela teoria animal-máquina de René Descartes. 

[21] Os avanços pelos animais no meio espírita tendem a se tornar algo individualista, para que o espírita desencarne bem. Mas, não haverá mudança substancial sem Justiça Social Multiespécie. 

[22] Como qualquer campo, o espiritismo é plural. Existem espíritas conversadores, progressistas, religiosos, laicos, veganos, socialistas etc. 

[23] O abate industrial de animais é uma prática que reforça socialmente o binômio humano-animal, que historicamente animaliza/desumaniza animais não-humanos e humanos marginalizados, como indígenas, negros, mulheres, identidades de gênero inconformes etc.

[24] Expressão utilizada pelo espírito Alexandre na obra Missionários da Luz de Chico Xavier, critica a exploração animal: “A nossa inteligência, tão fértil na descoberta de comodidade e conforto, teria recursos de encontrar novos elementos e meios de incentivar os suprimentos proteicos ao organismo, sem recorrer às indústrias da morte” (XAVIER; ANDRÉ LUIZ (Espírito), 2015. p. 42).

[25] Essa distinção não se aplica aos povos originários. Com bem explica Bruno Latour (2004) em Políticas da Natureza, essa divisão se origina de uma “forma muito particular de organização política” (p.107), ou seja, uma estrutura histórica e socialmente construída pelo Ocidente.

[26] O termo “espécie companheira” foi popularizado por Donna Haraway em seu livro “O Manifesto das Espécies Companheiras”. Haraway propõe uma visão de “parentesco multiespécies”, onde as trajetórias humanas e não-humanas são vistas como interdependentes e coevolutivas.

[27] A pecuária não era uma atividade dos povos indígenas e sequer existiam bois no ecossistema brasileiro: ela foi uma estratégica ferramenta da colonização, que introduziu os sujeitos bovinos (e outros animais) no país para serem transformados em carne e em outros produtos, como sebo, couro, leite e tração animal, e para trabalho forçado nos engenhos, junto com os negros e negras escravizados.

[28] BRUM, Eliane. Por um mundo mais-que-humano. 2023. Disponível em: https://sumauma.com/por-um-mundo-mais-que-humano/. Acesso em 10 mar. 2024.