Artigo #30 – Espiritismo e a liberação da caça no Brasil

Texto elaborado por Rafael van Erven Ludolf, comentando as medidas pela liberação da caça no Brasil e as mensagens espíritas contra a caça.

Questão 735: Que se deve pensar da destruição, quando ultrapassa os limites que as necessidades e a segurança traçam? Da caça, por exemplo, quando não objetiva senão o prazer de destruir sem utilidade? R: Predominância da bestialidade sobre a natureza espiritual. Toda destruição que excede os limites da necessidade é uma violação da Lei de Deus. Os animais só destroem para satisfação de suas necessidades; enquanto o homem, dotado de livre-arbítrio, destrói sem necessidade. Terá que prestar contas do abuso da liberdade que lhe foi concedida, pois isso significa que cede aos maus instintos.

(KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. 93. ed. 9. imp. Brasília: FEB, 2019, q. 735)

Questão 62: O não matarás alcança o caçador que mata por divertimento e o carrasco que extermina por obrigação? R: À medida que evolverdes no sentimento evangélico, compreendereis que todos os matadores se encontram em oposição ao texto sagrado. No grau dos vossos conhecimentos atuais, entendeis que somente os assassinos que matam por perversidade estão contra a Lei Divina. Quando avançardes mais no caminho, aperfeiçoando o aparelho social, não tolerareis o carrasco, e, quando estiverdes mais espiritualizados, enxergando nos animais os irmãos inferiores de vossa vida, a classe dos caçadores não terá razão de ser. Lendo os nossos conceitos, recordareis os animais daninhos e, no íntimo, haveis de ponderar sobre a necessidade do seu extermínio. É possível, porém, que não vos lembreis dos homens daninhos e ferozes. O caluniador não envenena mais que o toque de uma serpente? O armamentista, ou o político ambicioso, que montam com frieza a maquinaria da guerra incompreensível, não são mais impiedosos que o leão selvagem?…Ponderemos essas verdades e reconheceremos que o homem espiritual do futuro, com a luz do Evangelho na inteligência e no coração, terá modificado o seu ambiente de lutas, auxiliando igualmente os esforços evolutivos de seus companheiros do plano inferior, na vida terrestre.

(XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 29. ed. 11. imp. Brasília: FEB, 2020, cap. 1, “Ciência”, it. 1.1. “Ciências fundamentais”, subitem 1.1.5. “Sociologia”, q. 62)

O pleito de consideração ética com os outros animais e de reconhecimento de seus direitos fundamentais vem se tornando cada dia mais relevante, seja em âmbito acadêmico, jurídico, político, social, espiritual, religioso[1]. A Ética Animal e o Direito Animal, por exemplo, são disciplinas já consolidadas em seu campo teórico, contando com abordagens diversificadas que questionam o lugar privilegiado do humano e a consequente subjugação dos outros animais. Afinal, nada mais injusto que dar status de coisa àquilo que Deus deu a graça da vida.

Na contramão, encontram-se uma série de medidas para a legalização da caça amadora ou esportiva no Brasil. Dessa forma, sob a ótica dos comentários assertivos dos espíritos em oposição à caça, analisaremos o cenário brasileiro atual sobre o tema, por meio da correlação entre i) os Projetos de Lei Pró-caça que pretendem regulamentar a caça esportiva no Brasil, ii) a liberação da caça aos Javalis e iii) as medidas de facilitação de acesso a armas de fogo[2]. Além disso, faremos uma breve análise antropológica da prática da caça, para compreender sua origem histórica e estrutura de manutenção de simbologias de poder. Ao final, avaliaremos o levantamento destas estruturas materiais pró-caça à luz das presentes questões dos espíritos.

De início, a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197, de 3 de janeiro de 1967)[3], já no caput do seu art. 1º proíbe no âmbito federal a perseguição, destruição, caça ou apanha do animal silvestre, bem como de seus ninhos, abrigos e criadouros naturais. Segundo esta lei, a caça profissional está proibida no território nacional, sem exceções; já a caça esportiva, que é inicialmente proibida, pode ser excetuada com autorização do poder público, quando entendida como “caça de controle”, que é o caso dos javalis, como veremos.

Nesse sentido, somente se houver peculiaridades regionais o órgão público federal (IBAMA) poderá conceder permissão para a caça, conforme ocorreu com o javali, por meio da questionável Instrução Normativa Ibama nº 03/2013[4] que decretou a sua nocividade e dispôs sobre seu manejo e controle, sendo alterada posteriormente pela IN Ibama nº 12/2019, que instituiu o Sistema Integrado de Manejo de Fauna (SIMAF), como sistema eletrônico para recebimento de declarações e relatórios de manejo da espécie Javali, classificada como exótica, nociva e invasora[5].

Com a liberação da caça aos javalis e sua sistematização, espera-se uma diminuição da sua população ou o seu extermínio, certo? No entanto, não foi o que aconteceu, muito pelo contrário. Mas, veremos isso noutro momento do texto. 

Chama-se caça a atividade de perseguição de animais para capturá-los ou matá-los, seja para fins de subsistência, recreativo, profissional, científico ou de controle. Nas palavras de A. Nassaro, significa “a captura do animal no seu meio natural, abatido ou não” (NASSARO, 2015, p. 29).

Na perspectiva animal[6], ser perseguido, capturado, baleado, caçado e matado, seja para quaisquer fins, o pavor e a dor é condição inerente à sua complexidade espírito-mente-corpo. Quando o seu bem mais valioso está ameaçado, todo o seu ser responde em defesa da preservação da vida. As pupilas se dilatam, os batimentos aumentam, tudo se resume à fuga do risco iminente de morte. Todo o arcabouço evolutivo animal, conquistado em milhares de milhões de anos, unem-se para fugir do perigo mortal. O ato em si mesmo é cruel, sanguinário, agravado se o objetivo for pelo “prazer de destruir sem utilidade”, como disse Kardec, que obteve como resposta dos espíritos que se trata de “predominância da bestialidade sobre a natureza espiritual”.

No entanto, é justamente o que se pretende atualmente, visto que, apesar da proibição legal da caça profissional e esportiva de animais silvestres no Brasil, tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado pelo menos 12 (doze) Projetos de Lei visando a liberação da caça esportiva[7], com dois graves interesses comuns: (i) retirar a fauna silvestre da propriedade do Estado Brasileiro, tornando-a coisas sem dono (res nullius), dando ao Poder Público Municipal o poder de permitir a caça[8]; (ii) a criação de reservas de caça (ou reservas cinegéticas) para que pessoas tirem vidas animais por “prazer de destruir sem utilidade”. 

Um dos mais recentes, é o Projeto de Lei nº 5544/20, que dispõe já em seu art. 1º que fica permitido o exercício da caça esportiva e no art. 2º que são objetivos da caça esportiva: o fomento do espírito associativista para a prática do esporte.

À luz da ética animal, os outros animais existem para os seus próprios fins e não para servirem aos interesses e conveniências humanas, e aliado às questões dos espíritos em estudo, pode-se depreender que a caça “esportiva” e o dito espírito associativista para fins sanguinários, decorre doabuso da liberdadeque estimula osmaus instintos, sobretudo quando se “destrói sem necessidade”. Afinal, nada mais injusto que tirar a vida de outro ser senciente à força, sob perseguição e tiro, para mero deleite.

Quanto à facilitação do acesso a armas de fogo, o espiritismo se posiciona a favor da vida, inclusive da vida animal não-humana[9]. Atualmente, o governo federal publicou cerca de 37 decretos, portarias e projetos de lei[10] que facilitam e aumentam o acesso a armas de fogo e munições, o que favorece o jogo violento que caça e extermina a vida de indivíduos animais sencientes[11]. Tais normas permitem que profissionais autorizados, além de colecionadores, atiradores e caçadores (CACs), possam comprar mais armas e mais munições.

Desse modo, o ritmo de emissão de licenças para caçadores mais que triplicou nos últimos anos. O CR é oferecido por despachantes e clubes de caça ao redor do país, sem necessidade de saber usar armas ou ter problemas com javali. O teste psicológico pode ser feito pela internet. Com o CR, que leva em torno de três meses para sair, o caçador pode encomendar o armamento. Hoje em dia, armas de grande efeito, como fuzis, que antes ficavam restritas a grupos criminosos mais estruturados, podem ser obtidas legalmente por praticamente qualquer interessado.

Num olhar histórico e antropológico, a caça, como ação antrópica, vem sendo realizada há milhares de anos. De certo modo, por representar a dominação do predador sobre suas presas, ela foi vista como característica de demonstração da superioridade humana sobre as outras espécies.

No território invadido que veio a se chamar Brasil, a caça era praticada pelos indígenas bem antes da chegada dos portugueses e demais europeus colonizadores, contudo prevalecia entre eles a caça de subsistência.

Com a chegada dos europeus, iniciou-se o processo de comercialização da natureza brasileira. Desse modo, a economia da colônia se desenvolveu basicamente da extração dos mais diversos “produtos” vegetais, minerais e animais. O interesse constante pelos animais não-humanos fez com que se desenvolvesse uma cadeia produtiva, onde cidadãos autônomos se especializaram na caça de animais que passaram a ser francamente comercializados, fato que se tornou altamente nocivo à manutenção da biodiversidade brasileira. Por isso, dando um salto temporal, as leis que proibiram a caça e instituíram que a fauna é propriedade do Estado Brasileiro, e não coisa de ninguém (res nullius), representaram importantes avanços, como a Lei 5.1967, de 1967, apesar das suas lacunas.

O ideário da caça, portanto, se vincula a uma percepção de nobreza e astúcia, que veio se construindo desde a pré-história com a passagem das sociedades humanas coletoras para caçadoras-coletoras. Com esse processo também as próprias sociedades foram se estruturando de forma a se dividir em “caçadores” e “não-caçadores”, sendo os caçadores escolhidos entre os seres humanos, geralmente do sexo masculino, que tinham força, coragem e inteligência para desenvolverem e utilizarem armas e armadilhas.

Essa noção acerca da percepção comportamental vinculada à prática é importante para compreender os mecanismos simbólicos responsáveis pela manutenção das práticas dos atos de caça esportiva ora questionadas. O padrão de dominação sobre o animal, parece atender a uma cultura associada à nobreza, “esporte de nobres”, ligado à virilidade, à dominação, por meio de uma atividade que transforma vidas em troféus, que como disseram os espíritos decorre dos “maus instintos”, mesmo em tempos de maiores opções de métodos científicos menos invasivos para o equilíbrio ambiental.

Do ponto de vista do Direito, o sistema jurídico brasileiro opera moralmente sob o conceito de dignidade – isto é, tratar outro como um fim em si mesmo e não como um mero meio. Ademais, em seu art. 225, a Constituição impõe ao poder público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, bem como, para assegurar a efetividade desse direito, impõe ao poder público a proteção da fauna e da flora e veda as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade (§1º, VII). A partir disso, compreende-se os deveres para com os outros animais.

Este dever de cuidado com a fauna e a flora imposto constitucionalmente ao poder público e a coletividade dialoga com outra mensagem do benfeitor Emmanuel, quando dispõe que

[…] recebei como obrigação sagrada o dever de amparar os animais na escala progressiva de suas posições variadas no planeta. Estendei até eles a vossa concepção de solidariedade, e o vosso coração compreenderá, mais profundamente, os grandes segredos da evolução, entendendo os maravilhosos e doces mistérios da vida.

(XAVIER, Francisco Cândido. Emmanuel. Pelo Espírito Emmanuel. 28. ed. 9. imp. Brasília: FEB, 2020, cap. 17, “Sobre os animais”).

A regra constitucional da proibição da crueldade acima (art. 225, §1º, VII), fundamenta a nova ciência jurídica do Direito Animal[12], que encontra nela o marco inicial para a sua autonomia científica, pois colocou os animais em posição de titulares/beneficiários do sistema constitucional brasileiro. Com isso, a partir da compreensão da senciência[13], a dignidade animal deve ser conferida.

Ao proibir práticas cruéis, a Constituição brasileira considerou os animais não-humanos como seres importantes por si próprios, como fins em si mesmos[14], ou seja, reconheceu, implicitamente, a dignidade animal. Tal atributo já fora até mesmo reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal[15].

Deste importante dispositivo Constitucional, autores como Ataide Junior (2020) têm elaborado propostas de princípios jurídicos do Direito Animal, como, por exemplo, o Princípio da Dignidade Animal, que considera que os animais não humanos são importantes como indivíduos sencientes, com dignidade própria, visando um estado de coisas a ser promovido que é o redimensionamento do status jurídico dos animais não-humanos, de coisas para sujeitos.

Tem-se também o Princípio da Universalidade, extraído do mesmo dispositivo constitucional, vez que o artigo não faz distinção entre espécies animais dignas de proteção contra a crueldade. O estado de coisas a ser promovido é a proibição de condutas, inclusive legislativas e administrativas, que manifestem preconceito ou discriminação pela espécie[16], notadamente constatadas pelo desprezo à dignidade de animais de uma determinada espécie ou grupo animal, aos quais se sonegam direitos fundamentais, como se tem feito como os javalis e nas referidas propostas de lei pró-caça, que se aprovadas se estenderão para outros animais, que terão também seus direitos divinos e jurídicos suprimidos.

A nova ciência jurídica do Direito Animal, fundamentada na Ética Animal, se trata de entendimento pós-humanista, superando a ideia de dignidade kantiana (só para humanos) e o dualismo cartesiano entre humanos e natureza, vez que compreende que o animal não-humano senciente interessa como indivíduo, dotado de dignidade própria e, a partir disso, como sujeito do direito fundamental à existência digna.

Na contramão, o Projeto de Lei nº 5544/20, por exemplo, que visa liberar o exercício da caça esportiva, apresenta já no início da sua justificativa[17] críticas ao fato de apenas se poder caçar javali, como se não bastasse. O projeto classifica o javali como o grande responsável pelos problemas ambientais, e oferece uma medida quase heróica, que é a sua eliminação por meio de um único método: o tiro. Ou melhor, o tiro esportivo. Excluem, por exemplo, métodos de controle mais eficazes e éticos, como a castração desses animais, que já é feita em outros países, bem como, esquecem que o javali foi introduzido arbitrariamente no Brasil para a exploração de sua carne.

Ainda na justificativa, o PL argumenta que a liberação da caça é importante para a conservação das espécies, em desalinho com consenso científico de que a caça é uma das atividades mais drásticas ambientalmente, sem falar do dano irreversível ao próprio animal, que perde o seu bem mais valioso: a vida. A caça, comprovadamente, é uma das maiores causas de extinção de espécies.

Antunes et al (2016), publicaram artigo na revista Science Advances[18] apresentando dados preocupantes: entre 1904 e 1969, período em que a caça era permitida no Brasil, cerca de 23 milhões de animais silvestres, de pelo menos 20 espécies, foram assassinados apenas nos estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima. Eles eram destinados sobretudo ao comércio de peles e couros.

Retomando, então, aquela pergunta, do porquê não ocorreu a diminuição da população dos javalis com a liberação da sua caça de controle? Ocorre que em 2016, tinham Javali em 563 municípios, e em 2019, o número quase triplicou, aparecendo o animal em 1.536 municípios, indicando que a expansão acelerada do Javali é proposital, com interesses que não são o controle dos Javalis para preservação das lavouras.

Segundo levantamento de Maciel et al (2021)[19], foram emitidos entre janeiro de 2019 e agosto de 2021, 193.539 certificados de registro de caçadores, o chamado CR. Em comparação com o mesmo período entre 2016 e 2018, o aumento chega a 243%. No ano de 2021, até agosto, foram emitidos 75.289 certificados, número maior do que qualquer um dos cinco anos anteriores. Apesar disso, a população dos Javalis em nada diminuiu, o controle parece ter se tornado pretexto para o descontrole e diversão mediante caça e acesso a armamento e munições.

Segundo outra pesquisa[20] sobre os dados do Ibama quanto à caça dos javalis, se os planos de controle são usados para a erradicação do animal classificado como “invasor”, seria esperado que os caçadores matassem mais fêmeas e filhotes, de modo a dificultar a reprodução. Os números, contudo, mostram que os caçadores preferem machos adultos – o que rende mais fotografias e vídeos nas redes sociais do que as javalinas, que têm uma imagem menos ameaçadora (confirmado os símbolos de poder já expostos). Foi abatido em todo o país, de janeiro de 2019 a setembro de 2020, um total de 78.956 javalis. O Ibama analisou os animais mortos nos nove primeiros meses de 2020 (53,9 mil). Desse total, 71% eram machos e 70% eram adultos.

Assim, pela análise crítica da expansão dos Javalis mesmo após a controversa liberação de sua caça; dos crescentes Projetos de Lei Pró-Caça e das medidas de facilitação do acesso a armas de fogo, com um aumento exponencial de certificados de registro de caçador, foi possível perceber uma correlação entre tais medidas, um projeto com vistas a facilitar a matança de animais e estimular os maus instintos, com vistas ao lucro, fomento de um mercado que segue em expansão, na contramão dos avanços ético-jurídicos pelos animais e construção do Mundo de Regeneração.

O irmão Javali, espécie introduzida no Brasil com intenção de lucros para alimentação de suas carnes, segue agora como pretexto aos interesses mesquinhos, atendendo a uma cultura ligada ao instinto de dominação. Causar tamanho pavor aos animais, para se divertir e lucrar, sob o jugo da opressão e dor alheias, é banalizar a crueldade animal e obstaculizar a evolução humana, em oposição ao mandamento de amor ao próximo, no qual estão incluídos os animais.

A sociedade civil tem se posicionado contrariamente à caça e flexibilização do porte de armas, por meio de diversas manifestações, como a pesquisa Ibope realizada em 2019, que revelou que 93% da população brasileira rejeitam a prática, o manifesto “Sociedade Reage: não à liberação da caça no Brasil”, assinado por mais de duzentas Organizações Não Governamentais (ONGs), especialistas, técnicos e pesquisadores da área ambiental, artistas, formadores de opinião e outros membros da sociedade civil, assim como outra pesquisa realizada também pelo Ibope, que mostrou que 73% das pessoas são contra a flexibilização do porte de armas no Brasil. Apesar disso, abundam medidas a favor da caça e das armas, como visto.

Assim, pela análise das condições materiais pró-caça acima levantadas e correlacionadas, penso que é possível enxergar com maior profundidade as questões espirituais em estudo, de forma mais aderente aos desafios do hoje, que apontam noutros rumos, que não a banalização da morte de animais para fins de divertimento.

A questão 735 de O Livro dos Espíritos foi clara que destruir sem utilidade e por mero prazer reforça a predominância dos maus instintos e viola os limites da necessidade, das Leis de Deus, e que os responsáveis “terão que prestar contas do abuso da liberdade que lhe foi concedida”. Aqui, me sinto à vontade de incluir também os responsáveis indiretos, no sentido de omissão. Sendo assim, há muito o que se fazer, pois a regulamentação da caça esportiva no Brasil em curso só ocorrerá por meio de mudanças legais, culturais, ideológicas, fruto de interesses, debates, omissões etc, não por imposição divina.

A questão 62 aponta na mesma direção. Inserida no capítulo sobre a sociologia, Emmanuel demonstra como as estruturas materiais viabilizam a predominância dos maus instintos, como a caça esportiva.  Destaca a dissonância do “caçador que mata por divertimento” com as virtudes ensinadas no Espiritismo, aponta para a necessidade de aperfeiçoamento do “aparelho social” e de uma percepção mais espiritualizada onde a caça “não terá razão de ser”, que deve refletir-se na gestão ética da fauna pelos particulares e órgãos públicos, baseada numa fraternidade pluriespécie. Destaca, ainda, os “homens daninhos”, o “caluniador”, o “armamentista”, o “político ambicioso”, que podem estar representados nas atuais medidas pró-caça, conforme as correlações feitas. Por fim, pondera que o homem espiritual do futuro, “com a luz do Evangelho na inteligência e no coração”, terá modificado o seu ambiente de lutas, “auxiliando igualmente os esforços evolutivos dos animais”, alinhado com os preceitos da Ética Animal e do Direito Animal expostos.

No mesmo diapasão, o espírito André Luiz, após listar na obra Conduta Espírita uma série de atitudes nocivas aos animais, asseverou que “há divertimentos que são verdadeiros delitos sob disfarce” [21]. Entendo que a caça esportiva é um deles.

Por fim, o espírito Humberto de Campos, por meio da psicografia de Chico Xavier, resgatou uma importante interpretação de Jesus sobre o mandamento “não matarás”, citado por Emmanuel na questão 62, deixando claro que sua prescrição proibitiva inclui também a vida animal. Esta mensagem espírita é esclarecedora pois há séculos este mandamento tem sido ensinado em desfavor dos animais, como se suas vidas fossem menos importantes para Deus.

“Reza a lei do passado: Não matarás; eu, porém, vos digo que não se deve matar em circunstância alguma e que se faz indispensável a vigilância sobre os nossos impulsos de oprimir os seres inferiores da Natureza, porque, um dia, responderemos à Justiça do Criador Supremo pelas vidas que consumimos”

(XAVIER, F. C.; IRMÃO X (Espírito). Pontos e Contos. 13 ed. 2 imp. Brasília: FEB, 2016. 270 p. Capítulo 33 “A dissertação inacabada”, pp. 166).

Trata-se de um importante argumento espírita a favor da libertação animal e para se perceber como o Espiritismo contribui para a superação de conceitos antropocêntrico-especistas que excluem os animais da esfera da moralidade humana e que organiza a sociedade com base na opressão animal. Além disso, a mensagem de Jesus se refere também aos “impulsos de oprimir” de forma semelhante aos “maus instintos”, relacionados à prática da caça esportiva.

As metas primordiais do cristão-espírita se encontram na vivência da “Lei de Justiça Amor e Caridade” e do “Maior Mandamento”, que foram especificamente interpretadas pelos Bons Espíritos como só podendo ser integralmente vividas se nelas for incluído o amor aos animais e à Natureza, sublimando o orgulho e o egoísmo e cooperando com Vida em abundância para todos os seres. A caça esportiva, nesse particular, só cabe num passado distante, não podendo reaparecer chancelada pelo lucro.

No entanto, após o preparo deste texto, fomos surpreendidos com a notícia (17/12/2022) de que o Ministério do Meio Ambiente (MMA) do governo derrotado nas eleições deste ano, editou novo instrumento para legalizar a caça da fauna brasileira, por meio da portaria nº 299, de 13 de dezembro que institui o Programa Nacional de Conservação da Biodiversidade – CONSERVA+, que ao invés de conservar algo, ilude, engana e abre as portas para a criação de fazendas de caça, para o massacre de animais, que são considerados “conflitantes com as atividades do homem” e para outras estratégias que possam ser uma oportunidade econômica!​[22]

É tempo da re-ligação com a Natureza, da redescoberta do sagrado de todos os seres, da superação do especismo estrutural, por meio do engajamento sócio-político-espiritual para a construção de uma sociedade mais-que-humana.

Sigamos…

Referências:

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ANTUNES, André P; FEWSTER, Rachel M; VENTICINQUE, Eduardo M; PERES, Carlos A. LEVI, Taal; ROHE, Fabio; SHEPARD JR; Glenn H. Empty forest or empty rivers? A century of commercial hunting in Amazonia. Science Advances. 2016. Vol 2. Issue 10.

BRASIL. SÍNTESE DOS ÍNDICES DE VIOLÊNCIA, TRABALHO ESCRAVO E MORTALIDADE INFANTIL NO BRASIL. Disponível em: http://olma.org.br/wp-content/uploads/2016/12/BRASIL-s%C3%ADntese-das-viol%C3%AAncias-e-emergencias-sociambientais.pdf. Acesso em: 26 jan. 2022.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 5544/2020. Dispõe sobre a autorização para caça esportiva de animais no território nacional. 2020. Disponível em https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2267350. Acesso em 20 out. 2021.

CAMPOS, Guilherme de Souza; ROSA, Vanessa de Castro. Reservas cinegéticas: outro perigo para a fauna brasileira. In: Alexandre Ogêda Ribeiro; Cicília Araújo Nunes; Daniel Braga Lourenço; Juliane Caravieri Martins; Zélia Maria Cardoso Montal. (Org.). O DIREITO ANIMAL: A TUTELA ÉTICO-JURÍDICA DOS SERES SENCIENTES. 1ed. Londrina: Editora Thoth, 2021, p. 515-530.

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no Campo Brasil 2020. Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/downlods?task=download.send&id=14242&catid=41&m=0. Acesso em 28 jan. 2022. 

DA SILVA, Maria Alice. Direitos animais: Fundamentos éticos, políticos e jurídicos – Rio de Janeiro: ape’ku, 2020.

DOMINGUES, Aleska de Vargas. Defesa da proteção aos animais silvestres contra a caça no Brasil: um ensaio entre a Lei 5.197/1967, o projeto de lei 6.268/2016 e as manifestações da sociedade. In: Gisele Kronhardt Scheffer. (Org.). Estudo criminais de Direito Animal.

KARDEC, Allan. O livro dos espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. 93. ed. 9. imp. Brasília: FEB, 2019, q. 735

MACIEL, André; GUIMARÃES, Arthur; GRANDIN, Felipe; NETTO, Vladimir, G1 e Fantástico. Emissão de licenças para caçadores mais que triplica no governo Bolsonaro. 19/09/2021. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/19/emissao-de-licencas-para-cacadores-mais-que-triplica-no-governo-bolsonaro.ghtml. Acesso em 10 out. 2021.

NASSARO, Adilson Luís Franco. Tráfico de Animais Silvestres e Policialmente Ambiental – Oeste do Estado de São Paulo (1998 – 2012). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2015.

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VALENTE, Rubens. Aumento da ocorrência de javalis levanta dúvidas sobre plano de combate. 10/10/2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2021/10/10/norma-presidencia-ibama-caca-a-animais-silvestres.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em 10 out. 2021.

VIEIRA, Ana Lívia Bonfim. Entre a “métis” da pesca e a honra da caça. Rio de Janeiro: Revista Phoînix, 2008. Disponível em: http://phoinix.historia.ufrj.br/media/uploads/artigos/4_-_Entre_a_Metis_da_pesca_e_a_honra_da_caca_-_Ana_Livia_Bonfim.pdf> Acesso em: 27 jan. 2022.

VIEIRA, W. ANDRÉ LUIZ (Espírito). Conduta espírita. 32 ed. 7 imp. Brasília: FEB, 2017. 118 p. Capítulo 33 “Perante os animais”, pp. 89-90.

XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). Emmanuel. 28 ed. 5 imp. Brasília: FEB, 2016. 208 p. Capítulo 17 “Sobre os animais”, pp. 109-113.

XAVIER, Francisco Cândido. O consolador. Pelo Espírito Emmanuel. 29. ed. 11. imp. Brasília: FEB, 2020, cap. 1, “Ciência”, it. 1.1. “Ciências fundamentais”, subitem 1.1.5. “Sociologia”, q. 62.

XAVIER, F. C.; IRMÃO X (Espírito). Pontos e Contos. 13 ed. 2 imp. Brasília: FEB, 2016. 270 p. Capítulo 33 “A dissertação inacabada”, pp. 166.


[1] Temos inserido o Espiritismo nesse debate, oferecendo seus saberes sobre a natureza e trajetória do ser espiritual, a favor da vida animal.

[2] Segundo Campos e Rosa (2020), os interesses pela liberação da caça estão atrelados a um comércio bilionário promovido pelo tráfico de animais e pela liberação de armas, pauta constante da indústria bélica.

[3] Esta lei de 1967 elenca exceções e lacunas passíveis de diferentes interpretações e entrou em vigor antes da Constituição Federal de 1988, que prevê a regra de vedação da crueldade contra animais, bem como, antes do surgimento e consolidação do Direito Animal brasileiro.

[4] A liberação recebeu muitas críticas, especialmente pela carência de estudos científicos que a sustentassem, como o estudo populacional dos javalis e por apresentar como única alternativa a sua matança, e não outros métodos que respeitem a dignidade animal, nos moldes da regra constitucional de proibição da crueldade contra os animais (art. 225, §1º, VII). Oportuno destacar também que a 2ª Seção do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), em julgamento realizado em 2008, determinou a proibição da caça amadora no Rio Grande do Sul. O colegiado considerou que (i) não ficou comprovado o rigoroso controle da atividade por parte do Ibama; (ii) que a caça amadorista não tem finalidade social relevante que a legitime; (iii) concluiu pela nocividade da caça amadora ao meio ambiente; (iv) que seria uma prática cruel, expressamente proibida pela Constituição Federal; e que (v) para permitir as caças de controle ou científica, o Ibama precisa, primeiro, provar com estudos prévios, inequívocos e definitivos a real necessidade de reduzir a população de determinado animal.

[5] Tais termos são comumente encontrados nos discursos pró-caça, como estratégia de culpabilização da vítima (o javali) e de legitimação do seu extermínio pela caça.

[6] Para a superação do antropocentrismo e do especismo, reflexos do egoísmo, é importante narrar os variados usos dos animais pela perspectiva dos próprios animais explorados. Na esmagadora maioria dos casos todos os seus interesses de viver e de não sofrer são violados em detrimento dos interesses humanos, mesmos os mais fúteis, como usar um cosmético, fruto de dolorosos testes em animais.

[7] Para mais detalhes: https://www.change.org/p/ao-congresso-nacional-reaja-diga-n%C3%A3o-%C3%A0-libera%C3%A7%C3%A3o-da-ca%C3%A7a-no-brasil. Acesso em 25 jan. 2022.

[8] A investida para permitir a caça pelo Poder Público Municipal é deveras preocupante, vez que possibilitaria que quaisquer espécies sejam caçadas, bastando que estejam “perturbando” em alguma medida as atividades humanas. Frise-se que inúmeros municípios brasileiros sequer dispõem de Secretária de Meio Ambiente e profissionais para fazer análises complexas desse tipo.

[9] Em parceria com o MOVE, a FEB editou o livreto “Em Defesa da Vida Animal. Violência não!”. Este livreto já está indo para a segunda edição.

[10] Judicialmente, algumas medidas foram barradas.

[11] Importante destacar o aumento da violência no campo desde o ano de 2019, com crescimento de mais de 8% no ano de 2020, em relação ao ano de 2019, inclusive durante um cenário de Pandemia da Covid-19 (CPT, 2020). Modificação que traga aberturas ao aumento do índice de armamento e munições se propõe ameaçadores nas áreas rurais, principalmente aos socioambientalistas, ao campesinato, aos membros de comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.

[12] O Direito Animal tem sido conceituado como o “conjunto de regras e princípios que estabelece os direitos fundamentais dos animais não-humanos, considerados em si mesmos, independentemente da sua função ambiental ou ecológica” (ATAÍDE, 2018, p. 50), assim como o “Direito dos Seres Sencientes, isto é, que toma como sujeitos de direitos os entes naturais que possuem uma vida mental e experienciam o mundo em primeira pessoa” (CARDOSO, 2022, p. 22).

[13] Senciência é um fato biológico, com vasta comprovação científica. Trata-se de um conceito que combina os termos sensibilidade e consciência, o que significa dizer, segundo Carlos Naconecy (2014, p. 108-109), que os animais não humanos são capazes de experienciar o mundo de forma subjetiva; de sentir e se importar com o que sente; de experimentar satisfação ou frustração; de sentir dor e desejar que ela acabe, que tem estados de consciência e exibem comportamentos intencionais.

[14] Mais uma vez notamos um diálogo com outra mensagem de Emmanuel, quando frisa que a vida do animal apresenta “uma finalidade superior, que constitui a do seu aperfeiçoamento próprio.” (XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). O Consolador. 29 ed. 5 imp. Brasília: FEB, 2017. 305 p. Capítulo 2 “Filosofia”, item 2.1. “Vida”, subitem 2.1.1. “Aprendizado”, questão 128, pp. 90).

[15] STF, Pleno, ADI 4983, Relator Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, julgado em 06/10/2016, publicado em 27/04/2017. “A Constituição, no seu artigo 225, § 1º, VII, acompanha o nível de esclarecimento alcançado pela humanidade no sentido de superação da limitação antropocêntrica que coloca o homem no centro de tudo e todo o resto como instrumento a seu serviço, em prol do reconhecimento de que os animais possuem uma dignidade própria que deve ser respeitada”.

[16] Podemos identificar duas formas de especismo: o especismo elitista e o especismo seletista. Segundo Heron Gordilho o especismo elitista é o preconceito do homem para com todas as espécies não humanas, e o especismo seletista, quando algumas espécies são alvo do preconceito e discriminação (GORDILHO, 2017, p. 184). Exemplificando, o especismo elitista considera todos os animais inferiores por não possuírem determinadas características arbitrariamente eleitas como sendo parâmetro para a superioridade, como a racionalidade, linguagem, cultura e alma. O especismo seletista ocorre quando se escolhe alguns animais para serem protegidos (cães e gatos) e relega outros à exploração e à morte (bovinos, suínos, aves…), animais majoritariamente utilizados em manifestações culturais.

[17] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0o4pobvxbxak21x9a4juf7qt2429330263.node0?codteor=1952405&filename=PL+5544/2020. Acesso em 27 jan. 2022.

[18] Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.1600936, acesso em 10 jan. 2022.

[19] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/09/19/emissao-de-licencas-para-cacadores-mais-que-triplica-no-governo-bolsonaro.ghtml, acesso em 15 out. 2021.

[20] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2021/10/10/norma-presidencia-ibama-caca-a-animais-silvestres.htm, acesso em 15 out. 2021.

[21] VIEIRA, W. ANDRÉ LUIZ (Espírito). Conduta espírita. 32 ed. 7 imp. Brasília: FEB, 2017. 118 p. Capítulo 33 “Perante os animais”, pp. 89-90.

[22] Ver mais em: https://www.instagram.com/reel/CmPrwtsAXbh/?igshid=NDk5N2NlZjQ.