Artigo #22: A LEI DO TRABALHO E OS ANIMAIS: uma reflexão histórica e espírita
Por Nathalie Ganda, membra do MOVE.
“O orgulho fez o homem dizer que todos os animais foram criados em sua intenção e para as suas necessidades.” (Allan Kardec, em A Gênese, capítulo VII, item 32).
Iniciei a redação desse artigo no dia 13 de maio de 2020, data em que lembramos a assinatura da Lei Áurea, tida no ano de 1888, marcando o fim da legalização da escravidão no Brasil. Para desenvolver o raciocínio sobre o trabalho dos animais, trago algumas considerações sobre a escravidão humana, limitada à dos africanos no Brasil, ciente de que o assunto é profundo e que aqui será observado na superfície.
A tradição do trabalho escravo era tão forte no período colônia do Brasil que a escravidão era considerada indispensável para a prosperidade do país. Tanto que o processo de “libertação” dos escravos demorou quase um século e foi extremamente complexo e conflituoso.
Os escravos eram vistos como indispensáveis para a manutenção da economia e a libertação deles era encarada como algo indesejável pelos detentores do poder à época (poder econômico, político e religioso). A exploração de vidas era algo bem rentável, era o setor mais próspero da sociedade brasileira.
Trazendo aqui um parágrafo do livro “Brasil: uma biografia”, do capítulo em que as autoras abordam o sistema escravocrata e a naturalização da violência, podemos sentir essa realidade:
“O jesuíta Antonil, dono de frases tão sintéticas como cruéis, definiu os escravos como “as mãos e os pés do senhor do engenho, porque sem eles o Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”. Real alicerce da sociedade, os escravos chegaram a constituir, em regiões como o Recôncavo, na Bahia, mais de 75% da população.” [1]
Bom aqui traçar uma breve linha do tempo, pois, como já dito, o caminho que desembocou na Lei Áurea começou bem antes. A mudança de entendimento quanto ao domínio da vida de outros seres, no caso, a dos escravos humanos trazidos de países do continente africano, deu-se em um longo processo.
Em 1831, a Assembleia-Geral do Brasil (o Parlamento brasileiro no Período Regencial), pressionada pela Inglaterra, aprovou uma lei, conhecida como “Lei Feijó”, declarando que os africanos que entrassem no país, a partir de sua vigência, seriam considerados livres. Os ruralistas da época não gostaram e, portanto, não cumpriram. Daí veio a expressão “para inglês ver”, pois, na prática, tudo continuava igual. Apesar disso, tal lei denunciou a injustiça do sistema e deu início a um importante processo de mudança. [2]
Ocorreu que, ao contrário do pretendido pelo Brasil, os ingleses não só viram como também agiram! Foi então que, em 1845, a Inglaterra aprovou o “Bill Aberdeen”, que autorizava a esquadra britânica a prender navios negreiros e julgar seus tripulantes como piratas. É claro que os poderosos do Brasil protestaram. Para resolver a questão, em 1850, Eusébio de Queiroz, ministro titular da pasta de Justiça, aprovou uma lei, que ficou conhecida pelo seu nome, extinguindo o tráfico negreiro e desferindo duro golpe nos lucros daquele negócio espúrio, que era o maior negócio brasileiro da época, representando metade de todas as importações.
Depois disso ainda tivemos a Lei do Ventre Livre, em 1871, declarando livres os filhos de escravas nascidos a partir daquela data, e em 1885 veio a Lei dos Sexagenários emancipando os maiores de sessenta anos de idade. Somente após todas essas leis e muitos debates, discussões, motins e revoltas, foi que surgiu a Lei Áurea.
Aqui convido o amigo leitor a parar e refletir sobre a nossa situação atual em relação aos animais, especialmente quanto àqueles ditos “de consumo” (vaca, galinha, porco, búfala, peixes, e outros animais criados em grupo), considerados indispensáveis para a alimentação humana e para a economia do país.
O Código Civil Brasileiro, de 2002, traz em seu texto, no artigo 1.444, que “podem ser objeto de penhor os animais que integram a atividade pastoril, agrícola ou de lacticínios” e continua, no artigo 1.447, que “podem ser objeto de penhor máquinas, aparelhos, materiais, instrumentos, instalados e em funcionamento, com os acessórios ou sem eles; animais, utilizados na indústria; sal e bens destinados à exploração das salinas; produtos de suinocultura, animais destinados à industrialização de carnes e derivados; matérias-primas e produtos industrializados.” [3] (grifos nossos).
Fácil perceber que as vidas desses animais estão sendo tratadas como objetos, equiparadas às máquinas. São tratadas pela lei de maneira semelhante. Algo parecido ao que aconteceu com a vida dos nossos irmãos do continente africano trazidos para o Brasil em navios negreiros no século passado.
No prefácio do livro “As abolições da escravatura no Brasil e no mundo”, o historiador e professor sorocabano Jaime Pinsky faz uma consideração primorosa: “a abolição da escravatura não foi apenas mais um fato histórico. Foi um reencontro do ser humano com a sua própria humanidade. Os escravos deixaram de ser tratados simplesmente como objetos…” [4]. Semelhante, sim?
O historiador francês autor da obra acima citada, Marcel Dorigny, cita um trecho de um discurso de Agénor de Gasparin, estadista abolicionista francês que, inclusive, fez experimentos com as mesas girantes e influenciou os estudos de William Crookes e de Camille Flammarion [5]. Em um debate parlamentar em abril de 1845, em resposta aos defensores da escravidão nas colônias, os quais afirmavam que os escravos eram felizes, Agénor, ironizando-os, afirmou:
“Vejam estas criaturas felizes! São vendidas na feira. Só em Guadalupe, em 15 anos, mais de um terço da população escrava foi vendido, 38 mil escravos de 90 mil. Os escravos são felizes! E eles fogem, fogem de todos os lugares. (…) Vós temeis então que eles fujam dessa realidade que tanto se alardeia!” [6]
Como aconteceu lá, hoje vivemos um movimento que alega o bem-estar dos animais dominados pelo homem. Diz-se que eles são felizes “trabalhando” para nós!
É a tal da propaganda dos ovos de galinhas felizes, pois estariam em um estado de liberdade. É o porco feliz que estampa a embalagem de linguiça, o frango feliz que oferece seus parentes no comercial da televisão, a vaca feliz que faz queijo e chocolate. Como naqueles tempos, os defensores da escravidão animal querem que acreditemos que os animais estão felizes mesmo sendo explorados e com as suas liberdades ceifadas.
É inegável que os animais também estão sendo tratados como objetos. Eles não são considerados vidas, eles apenas “trabalham” para os homens, geram fortunas para aqueles que os exploram. Parafraseando Agénor de Gasparin: São criaturas felizes! E, na linguagem de hoje, #sqn.
Precisamos lembrar, também, que, ainda hoje, no ano de 2020, existem navios nos oceanos, saindo de portos brasileiros, levando criaturas sencientes, em nome do “progresso” e dos interesses pessoais dos senhorios da atualidade. As criaturas que neles embarcam são separadas de suas famílias, colocadas em situação de extrema insalubridade e são consideradas produtos. Assim como foi com os africanos que foram trazidos para o Brasil, agora é o Brasil que manda vidas sencientes em navios para outros países, a fim de servirem aos homens como verdadeiros escravos. Os navios não são mais negreiros, são de bovinos [7].
A cena se repete em aviões, em carros, em caminhões. São criaturas que olham como quem pergunta a razão de tanta insensibilidade com suas vidas, de serem tratadas de forma tão insensível. Porcas que seguem em caminhões após uma vida em cativeiro, para serem transformadas em refeições humanas. Cavalos transportados com luxo para servirem de prêmio ao orgulho humano, após colocarem seus senhores no pódio de competições, ou aqueles, muitas vezes já “aposentados”, enfileirados em aviões rumando a outros países em que a sua carne é apreciada.
Falando em cavalos, há também os animais que “trabalham” como meios de transporte. Cavalos, burros, jegues. Quem nunca viu uma carroça sendo puxada por um animal magricelo, enquanto um humano ia sentado logo atrás, comandando seu serviçal para que o carregasse ele e suas coisas? Cenas que precisamos encarar, sem julgamento, mas praticando o discernimento. Estão aí e precisam ser vistas.
E as competições de beleza de animais? Gatos, cachorros, até galinhas, são expostos em concursos de beleza para que seus senhores recebam recompensas e notoriedade. Todos escravizados pelas mãos humanas, sob o pretexto de que nós teríamos esse direito de uso de suas vidas.
Continuando a linha de raciocínio, podemos refletir sobre os cachorros que “trabalham” para o homem ao serem comercializados, separados com rótulos distintos e selos de garantia de origem (pedigree); os animais silvestres que são vendidos, após serem retirados de seus habitats e de suas famílias. Pássaros são raptados em seus voos, araras azuis colocadas em jaulas para serem admiradas pelos olhos humanos. Espécies exóticas presas em zoológicos, para que a espécie humana possa se entreter. Baleias confinadas em tanques minúsculos para que turistas assistam espetáculos em que o coadjuvante é um humano.
Muitos animais são vítimas do tráfico e do comércio ilegal, muitos outros são legalmente considerados como propriedade de seus senhores, pois, dessa forma, são tidos como úteis a eles. Seu trabalho é tido como indispensável para a economia e para a sociedade, com o selo de “cultura”.
Existem os animais que servem aos homens gerando consequências fraternas, certamente. É o caso dos cães guias, cães farejadores, cavalos terapeutas. Até mesmo os animais ditos de estimação, os “pets”, que comumente são cães e gatos. São verdadeiros companheiros para quem sabe amá-los. Mas os animais tratados de forma digna, como indivíduos, constituem a minoria. Quantas cenas de maus-tratos aos cães e gatos não se tornam conhecidas na atualidade pelas facilidades da tecnologia? Fica para a reflexão de cada um.
E será que essas situações descritas nos parágrafos anteriores demonstram a aplicação da Lei do Trabalho para os animais? Cooperação ou dominação, qual delas dita as regras do nosso relacionamento com os animais? Quais respostas podemos encontrar na doutrina espírita quanto à Lei do Trabalho e os animais?
Voltemos rapidamente à linha do tempo traçada no início do artigo.
Por volta de 1853, em Paris, na França, começaram os fenômenos das “mesas girantes”. Pesquisador que era, Hippolyte Léon Denizard Rivail, dedicou-se ao estudo desses fenômenos e em 1857, já como Allan Kardec, publicou a obra “O Livro dos Espíritos”.
Certo é que, poucos anos antes, em 1848, foi decretado o fim da escravidão nas colônias francesas e o tema ainda era efervescente na Cidade Luz. Em muitos lugares, inclusive no Brasil, ainda era prática legal a escravidão de pessoas.
Importante considerar que na França a primeira experiência abolicionista ocorreu em fevereiro de 1794, em relação à escravidão no país. É conhecido o confuso processo envolvendo o assunto, particularmente quanto às colônias francesas, mas a elite intelectual da época, à qual pertencia Allan Kardec, era abolicionista.
Ok. E o que diz o Livro dos Espíritos sobre a escravidão?
Na questão 829, encontramos a seguinte pergunta: “Há homens que sejam, por natureza, destinados a ser de propriedade de outros homens?”. A resposta que segue é certeira: “toda sujeição absoluta de um homem a outro homem é contrária à lei de Deus. A escravidão é um abuso da força e desaparecerá com o progresso, como desaparecerão, pouco a pouco, todos os abusos” (grifo nosso) [8].
O que percebemos nas perguntas que seguem a questão 829 são especulações quanto aos costumes do povo à época, da ideia de desigualdade nas aptidões naturais, da culpabilidade minorada pelo “bom tratamento”, todas as argumentações utilizadas em relação à escravidão humana e, atualmente, a dos animais. Inclusive, em suas respostas, os espíritos já citam os exemplos dos animais como forma de comparar a exploração do trabalho e a privação do direito de se pertencerem a si mesmos (questão 832).
O que pretendo com tal narrativa é convidar o leitor à reflexão sobre os processos de mudança sociais, sobre o tempo que demanda e sobre as lutas que estão envolvidas no despertar da humanidade para com os outros. Século passado foi em relação à escravidão humana. Hoje ela se expande, abrangendo não apenas os humanos que ainda são explorados de diversas formas (inclusive nas atividades que exploram os animais), mas também as outras vidas sencientes que são abusadas, sem o direito de se pertencerem a si mesmas. A libertação animal faz parte da libertação humana. Faz parte da construção de uma sociedade fraterna, como nos ensina Jesus Cristo.
Da mesma forma como o mundo acreditou por um longo tempo que os escravos (não só os africanos trazidos para o Brasil) eram indispensáveis para a manutenção da sociedade, o mundo de hoje, em sua maioria, acredita que o domínio sobre os animais é necessário. Alguns dizem, como bem lembrado no item 32 do capítulo VII de A Gênese, ser um direito dos homens, por determinação divina, dominar a vida dos animais. Confundem trabalho com escravidão. Confundem conviver com explorar.
No meio espírita é comum ouvirmos que os animais estariam cumprindo a Lei do Trabalho ao servirem ao homem em suas mais diversas formas. Mas será que os animais obedecem à Lei do trabalho ao serem dominados pelos humanos ou existem outras formas de trabalhar?
Na questão 677 do Livro dos Espíritos, no capítulo sobre a Lei do Trabalho, encontramos a resposta. A pergunta é “por que a própria Natureza provê todas as necessidades dos animais?”. E a resposta é um brinde ao abolicionismo animal:
“Tudo na Natureza trabalha. Os animais trabalham como tu, mas seu trabalho, como sua inteligência, é limitado ao cuidado de sua conservação, eis porque, entre eles, o trabalho não conduz ao progresso, enquanto que, no homem, ele tem um duplo fim: a conservação do corpo e o desenvolvimento do pensamento, que é também uma necessidade e que o eleva acima de si mesmo. Quando digo que o trabalho dos animais é limitado ao cuidado de sua conservação, entendo o fim a que se propõem trabalhando; mas eles são, inconscientemente, e tudo provendo suas necessidades materiais, agentes que secundam os desígnios do Criador, e seu trabalho não concorre menos ao objetivo final da Natureza, se bem que, muito frequentemente, não descobris o resultado imediato.” (grifos nossos) [9]
Para onde olhamos vemos seres trabalhando. As pedras trabalham. O sol, as águas, o ar, a terra, o fogo, trabalham. As árvores trabalham. As minhocas trabalham. A formiga que carrega um pedacinho de folha está trabalhando. O pássaro que beija a flor está trabalhando. A galinha que se alimenta de escorpiões está trabalhando. Os escorpiões estão trabalhando. O leão que caça um veado está trabalhando. O urubu que sobrevoa a carcaça do veado está trabalhando. A vaca, em seu ambiente natural, está trabalhando.
Emmanuel nos brinda, em forma de poesia, nesse mesmo sentido:
“Tudo em torno de nós é um cântico de trabalho em doações da Eterna Bondade que se evidencia no mundo, de mil modos diferentes em cada instante de nossa vida…
Por amar, em nome do Pai Misericordioso,
serve o sol, sustentando todas as criaturas;
serve o chão, nutrindo a sementeira;
serve a nuvem, criando a chuva benéfica;
serve o vento, a serviço de abençoadas fecundações;
serve a árvore, para que o bem-estar do homem se consolide;
serve a flor, preparando a colheita;
serve a fonte, socorrendo a terra necessitada;
serve a pedra, garantindo a segurança do lar;
serve o pássaro, cooperando com o lavrador;
serve o mar, serve o rio, serve o adubo, serve o fogo…” [10]
Interessante notar a dificuldade de imaginar alguns animais trabalhando em seu ambiente natural, sem ser o que criamos para eles, através de nossa intervenção. Qual será o trabalho normal de um porco, por exemplo? Como fizemos com os cães milênios atrás, modificamos a maneira de viver de muitos animais para que eles pudessem colaborar com as nossas vidas. A questão é que passamos do ponto da cooperação, passamos a dominá-los. De irmãos menores, passamos a tratá-los como escravos.
Na imensidão daquilo que podemos fazer com a nossa inteligência, confundimos trabalho com domínio. Dominamos algumas espécies de animais para que eles “trabalhem” para nós, para que possamos ganhar com as suas vidas, com o tempo de suas existências. Precificamos suas vidas, desconsideramos suas finalidades divinas. Não respeitamos o trabalho que, de fato, lhes cabe: a própria conservação. Ora, os animais obedecem à Lei do Trabalho pela simples existência deles: basta serem respeitados em suas funções naturais dentro do sistema do qual também fazemos parte.
Entretanto, a nossa arrogância como espécie dominadora está colocando em risco a existência de muitos animais, inclusive da nossa própria espécie. Somos, todos, partes de um sistema complexo e incrível de Vida. Como estuda a ecologia, todos os seres vivos existentes se relacionam entre si e com o meio que o cercam.
O jornalista e ativista espírita, André Trigueiro, no livro “Espiritismo e Ecologia”, traz uma importante consideração sobre o processo de conhecimento dessa ciência ao citar os estudos do biólogo austríaco Ludwig von Bertalanffy, que em 1937 propôs uma mudança radical na ciência ecológica:
“contrapondo o reducionismo cartesiano, ele desenvolveu a Teoria Geral dos Sistemas, propondo que o ambiente passasse a ser observado como totalidade integrada e enfatizando a inter-relação e interdependência entre os seus componentes, sendo impossível estudar seus elementos isoladamente. O autor definiu sistema como um conjunto de elementos interdependentes que interagem, com objetivos comuns, formando um todo maior que a soma das partes, e no qual cada um dos elementos componentes se comporta, por sua vez, como um sistema, cujo resultado é maior do que o resultado que as unidades poderiam ter se funcionassem independentemente. Para Bertalanffy, a necessidade de um enfoque sistêmico da realidade surgiu em função das mudanças verificadas na sociedade”. [11] (grifo nosso)
Mais uma vez a importância das mudanças verificadas na sociedade! Assim foi com o tratamento oferecido aos homens vítimas da escravidão e agora se faz necessário em relação ao nosso comportamento diante das outras vidas que compartilham o planeta conosco. Perceber que estamos todos ligados através de fios invisíveis, que todos fazemos parte da Natureza e que precisamos de equilíbrio, com cada ser vivo trabalhando naquilo que foi convocado pela Inteligência Suprema, para que possamos conviver e dar alguns passos na caminhada evolutiva na qual todos estamos inscritos.
Nesse sentido é a resposta da questão 604 do Livro dos Espíritos, no item sobre os animais e o homem:
“Tudo se encadeia na Natureza por laços que não podeis ainda compreender, e as coisas, as mais díspares na aparência, têm pontos de contato que o homem não chegará jamais a compreender no seu estado atual. Ele pode entrevê-los por um esforço de sua inteligência, mas só quando sua inteligência tiver adquirido todo o seu desenvolvimento e estiver isenta dos preconceitos do orgulho e da ignorância, é que ele poderá ver claramente na obra de Deus. Até lá, suas ideias limitadas fazem-no ver as coisas de um ponto de vista mesquinho e restrito. Sabei bem que Deus não pode se contradizer e que tudo, na Natureza, se harmoniza por leis gerais que não se afastam jamais da sublime sabedoria do Criador”. [12] (grifos nossos)
E continua na questão 607:
“Reconhecei a grandeza de Deus nessa harmonia admirável [do Universo] que torna tudo solidário na Natureza. Crer que Deus haja feito alguma coisa sem objetivo e criado seres inteligentes sem futuro, seria blasfemar contra a sua bondade, que se estende sobre todas as suas criaturas”.[13] (grifos nossos)
Inclusive, tais afirmações são anteriores ao surgimento da ciência da Ecologia, que se deu em 1866 por iniciativa de Ernest Haeckel.
Talvez o trabalho dos nossos irmãos animais, especialmente aqueles que “produzimos”, seja também nos ajudar a identificar nosso orgulho e nossa ignorância para que possamos, um dia, ter acesso a essa inteligência anunciada pelos espíritos já em 1857. São verdadeiros mestres, que nos ensinam paciência, perdão, mansidão, alegria na adversidade. São escravizados, mas ainda assim usam a linguagem do amor para despertar o amor que habita em nós. Com os olhos e sons, que não deciframos, eles dizem mais que qualquer palavra.
E por falar nesses animais que “produzimos” para saciar as nossas escolhas alimentares, certo é que, ao agirmos como seus senhores, estamos interferindo de maneira irresponsável no equilíbrio planetário. Basta ver o número de animais que são criados, literalmente aos bilhões, para serem mortos em nome da alimentação.
Indubitavelmente, é nessa indústria da morte, como se refere o Benfeitor Alexandre, na obra “Missionários da Luz”, de André Luiz, psicografada por Chico Xavier [14], que mais “trabalham” os nossos irmãos menores.
Antes de refletirmos sobre os números dessa indústria, uma consideração é necessária. No momento em que escrevo esse artigo, o Planeta enfrenta uma batalha contra um vírus, cuja origem, muito provavelmente, está no consumo da carne de animais silvestres comercializados em um mercado de uma cidade chinesa. De lá alcançou toda a humanidade! Forte exemplo da inter-relação e interdependência de todo sistema de vida que forma a Terra e de nossa insensatez.
Agora vamos à realidade do “trabalho” que estamos impondo a alguns animais, cujas espécies escolhemos para servirem de alimento. Trago aqui esses números para que possamos ter uma dimensão da escravidão que ocorre nos dias atuais e porque, como disse o Mestre Jesus, “conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará” (João, 8:32).
Somente em 2019 foram abatidos no Brasil, oficialmente, 32.436.000 bovinos, 46.331.000 suínos e 5.805.393.000 frangos, segundo o IBGE [15]. De 1970 a 2006, com o uso de nossa inteligência, dobramos a quantidade de animais em estabelecimentos agropecuários, de 120 milhões para 240 milhões [16] e basta fazer a soma dos números de 2019 (5.884.160.000 – quase 6 bilhões de animais abatidos legalmente) para perceber que a situação só piora. São aqueles animais lá do começo da reflexão, ditos “de consumo” (vaca, galinha, porco, búfala e outros animais criados em grupo), considerados indispensáveis para a alimentação humana e para a economia do país. E nessa conta não estão incluídos os peixes, cuja pesca atualmente é predatória e que são criados também em fazendas, em tanques.
Ademais, esses números são apenas do Brasil. Não é brincadeira o que estamos fazendo com a Natureza. Nenhuma dessas espécies acima citadas alcançaria esse número populacional se estivesse vivendo de forma natural, limitando-se ao cuidado de sua conservação – como está no Livro dos Espíritos. Também é incontestável que tais animais apenas estão sendo “produzidos” nessa escala, com emprego de alta tecnologia, para servirem ao homem, para serem escravizados por nossos desejos, por nossa insensatez. Definitivamente, esse não é o trabalho desses irmãos menores!
Importante lembrar também a questão dos laticínios, obtidos com a exploração das fêmeas, mamíferas exploradas para produzirem leite para o consumo humano (alimento que, naturalmente, se destina aos seus filhotes).
Segundo o IBGE, a quantidade de leite cru adquirido no ano de 2019 gira em torno de 25 bilhões de litros e industrializado em torno de 25 bilhões de litros [17]. Assim como os abates clandestinos, o leite não inspecionado pela fiscalização sanitária (informal) não é contabilizado ou estimado pela pesquisa. Ou seja, o número é ainda maior.
E o que falar do “trabalho” das galinhas que “produzem” ovos. Outras fêmeas exploradas pelas mãos humanas. Segundo o IBGE, somente no ano de 2019 foram “produzidas” cerca de 3.833.665.000 dúzias de ovos. Quase 4 bilhões de dúzias de ovos. É um total de 46.003.980.000, ou seja, mais de 46 bilhões de ovos em um ano. Tais dados incluem apenas os estabelecimentos com dez mil ou mais galinhas poedeiras, pois os que têm menos animais “trabalhando” não são pesquisados [18]. Fácil concluir que o número de ovos realmente “produzidos” também é bem maior do que o divulgado pelo IBGE.
Como sustentar um sistema desse, de exploração, de domínio, de desequilíbrio? Merece destaque aqui a resposta dada à questão 595 do Livro dos Espíritos:
“os animais não são simples máquinas como acreditais, mas sua liberdade de ação é limitada às suas necessidades e não pode se comparar à do homem. Sendo muito inferiores ao homem, eles não têm os mesmos deveres. Sua liberdade está restrita aos atos da vida material.” (grifo nosso) [19]
Como vemos, os Espíritos que trabalharam na codificação da Doutrina Espírita deixaram bem claro já àquela época: os animais não são máquinas. E mais. Eles não têm os mesmos deveres que nós, humanos. Mas e os direitos? Interpretando a Doutrina de Jesus Cristo, relembrada pelos estudos de Allan Kardec, podemos afirmar que os animais têm direito à vida, à misericórdia, ao respeito. Eles têm o direito de serem vistos. E nós temos um dever que eles não têm: o de respeitar o equilíbrio da Natureza, de cuidar do Planeta Terra, morada de todos os seres incluídos no sistema ao qual estamos ligados.
Em relação aos outros usos que damos aos animais, por certo que não são menos importantes de serem revistos na nossa evolução como Espíritos, nessa escola planetária que nos ensina a amar. Contudo, não os abordarei neste artigo, primeiro em razão da extensão que ele ganharia e segundo porque o propósito imediato dessas considerações é fazer com que o leitor reflita sobre os seus próprios hábitos. E se há um hábito que praticamos todos os dias e que, por consequência, gera mais impacto no mundo e que também se torna mais fácil de modificar (como dizem: só por hoje!), esse hábito é o da alimentação.
Outrossim, a mudança na alimentação é algo que os que estão lendo este artigo podem escolher fazer. Lembrando que a mudança começa em nós e, como ensinam os espíritos amigos que servem em tantas escolas, inclusive na do Espiritismo: “a renovação autêntica tem de começar em nós mesmos” [20].
O querido irmão Miramez, através de João Nunes Maia, na obra intitulada “Saúde”, afirma que:
“Os seres humanos, mesmo com o suprimento que têm em mãos, no que tange à alimentação, comem erradamente. Disse o Divino Mestre: “Buscai e achareis”. E a consciência em Cristo nos diz: “Deveis saber buscar”. (…) O germe vegetal guarda o energismo da planta como tesouro que a natureza oferta ao Espírito em viagem na carne e este, por ignorância, esquece de aproveita-lo, para o seu próprio equilíbrio. Dentro dos grãos esplende a luz do reino vegetal que deve ser extraído com os recursos da boca, onde os dentes e as glândulas têm um papel de suma importância”. [21] (grifo nosso)
Outrossim, o mais importante da Lei, conforme dito pelo Mestre Jesus, é a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mateus, 23:17). Nós, como humanos, estamos em uma oportunidade de aprendizado e desenvolvimento diferente da dos animais, mas isso não justifica qualquer abuso de nossa parte quanto à vida deles, sob pena de não estarmos cumprindo estes três preceitos da Lei divina.
Como Irvênia Prada, veterinária, palestrante e escritora espírita, considera em seu livro “A Questão Espiritual dos Animais”:
“Retomando a pergunta inicial – por que existem os animais? – faço outra pergunta: se eles existissem apenas para servir ao homem, por que teriam sido criados seres peçonhentos como cobras e escorpiões? Penso que basta entender que eles existiram e existem por razões intrínsecas a si próprios, a matéria compartilhando com o princípio inteligente, sua evolução. A verdade é inexorável: nós já existimos neles! Não há animais de um lado e nós, seres humanos, de outro. Somos todos Espíritos na vivencia dos infinitos degraus do processo evolutivo, do qual os seres humanos deste ínfimo planeta, por mais que sua pretensão assim o deseje, não representam o ponto final.” [22] (grifo nosso)
Consciente de que as escolhas, tanto as alimentares como as demais, dizem respeito a cada um, no mesmo passo que as consequências delas; confiante de que a nossa insensatez pessoal não tem o poder de impedir as transformações universais necessárias nessa abençoada escola chamada Terra, dirigida pelo Mestre Jesus, sob a permissão da Inteligência Suprema; e com a esperança de mudanças quanto ao “trabalho” que estamos impondo aos animais, especialmente aos que enxergamos como ingredientes, deixo uma reflexão de Bezerra, datada de 02 de junho de 1988, encontrada no prefácio da louvável obra de Miramez, “Horizontes da Vida”:
“Estamos dentro de uma renovação doutrinária e o progresso não escolhe divisões; ele está em todas as áreas acionando a vida para frente e sempre em novos horizontes para serem desvendados. Deus é o doador supremo, não obstante. Ele deixa uma parte para que nós entendamos a importância da nossa cooperação, como sendo conquista marcando na vida os esforços que devemos fazer para a nossa felicidade.
(…)
A ninguém pretendemos violentar, forçando a nos acompanhar, mas convidamos a todos para analisarem o que falamos; e caso surja algum interesse, que experimentem mudar de vida, no sentido de não ter mais ódio, de esquecer a violência, de procurar perdoar sempre e de trabalhar no bem, que universaliza”. [23]
Que possamos, cada um e todos nós, trabalhar no bem universal, dentro e fora de cada um, para que todos os seres possam ser respeitados no seu caminho de evolução em busca da felicidade divina.
Referências bibliográficas:
[1] Schwarcz, Lilia Moritz. Starling, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. ed.1. p. 79.
[2] GURGEL, Argemiro Eloy. Uma lei para inglês ver: a trajetoria da lei de 7 de novembro de 1831. Disponível em https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_gaucho/revista_justica_e_historia/issn_1677-065x/v6n12/Microsoft_Word_-_ARTIGO_UMA_LEI_PARA_INGLxS_VER…._Argemiro_gurgel.pdf – consulta em 22 de maio de 2020.
[3] BRASIL, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm
[4] DORIGNY, Marcel. As abolições da escravatura: no Brasil e no mundo. Tradução de Cristian Macedo e Patrícia Reuillard. São Paulo: Contexto, 2019.
[5] https://en.wikipedia.org/wiki/Ag%C3%A9nor_de_Gasparin
[6] DORIGNY, Marcel. As abolições da escravatura: no Brasil e no mundo. Tradução de Cristian Macedo e Patrícia Reuillard. São Paulo: Contexto, 2019.
[7] CENTRO DE ESTUDOS AVANÇADOS EM ECONOMIA APLICADA (CEPEA) DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. “Exportação de gado em pé salta de 407 mil em 2017, para 790 mil em 2018” – 28/05/2019. (O volume de gado em pé exportados pelo Brasil em 2018 praticamente dobrou em relação ao ano anterior. Segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério de Economia. em 2017, o país embarcou pouco mais de 407 mil cabeças, saltando para 790 mil cabeças no ano passado. Os maiores destinos dos animais brasileiros foram Turquia, Egito e Líbano, justamente países que, geralmente, preferem realizar o abate do gado conforme suas próprias diretrizes. As exportações brasileiras de animais em pé, além de ocorrerem para fornecer boi para abates específicos, são voltadas também para atender à procura por parte de criadores de gado com boa genética para reprodução, como é o caso Paraguai.). Disponível em: https://animalbusiness.com.br/colunas/numeros/)
[8] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentile. Araras: IDE, 2009. 182 ed. p. 260.
[9] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentile. Araras: IDE, 2009. 182 ed. p. 220.
[10] XAVIER. Francisco Cândido. Instrumentos do tempo. Pelo espírito Emmanuel. São Bernardo do campo: Grupo Espírita Emmanuel, 1974. cap. 22, p. 98.
[11] MENDES, André Trigueiro. Espiritismo e ecologia. Brasília: FEB, 2017. 4 ed. p. 29-30.
[12] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de Salvador Gentile. Araras: IDE, 2009. 182 ed. p.200.
[13] idem, p. 201.
[14] XAVIER, F. C.; ANDRÉ LUIZ (Espírito). Missionários da Luz. 45 ed. 3 imp. Brasília: FEB, 2015. 382 p. Capítulo 4 “Vampirismo”, pp. 42-46.
[15] BRASIL, IBGE. Número de animais abatidos e peso total das carcaças por espécie e variação, segundo os meses – Brasil – 2018 – 2019. Disponível em https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/agricultura-e-pecuaria/9203-pesquisas-trimestrais-do-abate-de-animais.html?=&t=resultados.
[16] BRASIL, IBGE. Efetivo de animais em estabelecimentos agropecuários por espécie, 1970 – 2006. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/agricultura-e-pecuaria/21814-2017-censo-agropecuario.html?=&t=series-historicas
[17] BRASIL, IBGE. Quantidade de leite cru adquirido e industrializado e variação, segundo os meses – Brasil – 2018 – 2019. Disponível em:https://www.ibge.gov.br/busca.html?searchword=produ%C3%A7%C3%A3o+de+leite
[18] BRASIL, IBGE. Produção de ovos de galinha. Disponível em:
[19] KARDEC, Allan. O Livro dos Espiritos. Tradução de Salvador Gentile. Araras: IDE, 2009. 182 ed. p. 199.
[20] XAVIER. Francisco Cândido. Respostas da vida. Pelo espírito André Luiz. São Paulo: Ideal, 2015. 15 ed. cap. 19, p. 43.
[21] MIRAMEZ (Espírito). Saúde. Psicografia de João Nunes Maia. Belo Horizonte: Fonte Viva, 1998. 10 ed. p. 35.
[22] PRADA, Irvênia L. S. A questão espiritual dos animais. São Paulo: FE editora jornalística, 2018.
[23] MAIA, João Nunes. Horizontes da Vida, pelo espírito Miramez. Belo Horizonte: Fonte Viva, 2001. 6 ed. pp. 10-11.
Pecados praticados por humanos, escravizando humanos inocentes, provam que somos os irracionais sem Deus embora supunha-se erroneamente que Deus estava na capela da fazenda onde pretos velhos eram torturados no tronco até a morte . Deus não estava no altar mas ao lado de quem sofria injustamente o castigo arbitrário e cruel. Enganam-se os espíritas cristãos que, interpretações do Pentateuco, literalmente puxando a brasa para a sua sardinha, na intenção de obter aval à continuação de sua prática, os possa eximir da responsabilidade de sua conduta equivocada, perante o Criador. Abster-se do consumo de animais deveria ser tão óbvio quanto a posição veemente e firme contra o aborto, o suicídio, a eutanásia e a pena de morte. Animais são vidas sagradas que importam para Deus tanto quanto as vidas humanas. Não nasceram para uso e descarte nem são escravos. São irmãos.