Artigo #28 – Proposta de eixos para a Ética Animal Espírita

Por Rafael van Erven Ludolf, membro do MOVE.

Atualizado pelo autor em 06 de abril de 2023.

1. Espiritismo e a nova sensibilidade com a Natureza

O século 18 foi marcado pelo nascimento de uma nova sensibilidade em relação aos animais e à Natureza em contexto europeu, seja por fontes científicas, filosóficas ou religiosas, tendo como marco a criação de várias instituições de proteção animal, incluindo campanhas antivivisseccionistas, apelos ao vegetarianismo e elaboração de leis em combate aos mais diversos tipos de maus-tratos, assim como obras defendendo que os humanos têm deveres morais relevantes para com os animais [1].

Por exemplo, a filósofa Sonia Felipe, destaca a argumentação de Humphry Primatt, teólogo e vigário, elaborada em 1776, na obra The Duty of Mercy, em defesa da coerência moral humana na consideração da dor e do sofrimento de animais humanos e não humanos. Os argumentos de Primatt, críticos à filosofia moral tradicional, por seu antropocentrismo, e radicais no emprego do princípio da igualdade, contrário a todas as formas de discriminação moral, são centrais à ética animal de Richard Ryder e Peter Singer, autores que desenvolveram o conceito de especismo (discriminação da espécie humana contra outras espécies animais) e publicaram importantes obras na década de 1970, como por exemplo Libertação Animal [2].

Neste período de mudança, marcado pelo abandono do paradigma antropocêntrico, os debates éticos passaram a ter horizontes mais amplos, abraçando outras formas de vida e não somente o homem, surgindo novas pautas no campo moral, como as teses ecocêntricas e biocêntricas [3].

E é no século seguinte, 19, que nasce o Espiritismo como doutrina codificada por Allan Kardec, pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), influente educador, autor e tradutor francês que desenvolveu investigações sobre fenômenos psíquicos/espirituais e fundou uma Filosofia Espiritualista à qual deu o nome de Espiritismo.

Portanto, o Espiritismo nasce justamente nesta época demarcada pela crescente onda de sensibilidade com os animais e a Natureza, com possibilidades de, apesar do antropocentrismo e do especismo ainda dominantes, que Kardec utilizasse dessas propostas de éticas mais sensíveis aos animais e o mundo natural na obra espírita.

´Poderia-se até mesmo crer que havia um propósito dos espíritos de alavancar a superação do paradigma antropocêntrico neste espaço-temporal. Era preciso romper com a indiferença moral para com os animais e o meio ambiente e consolidar as bases para uma sociedade mais-que-humana.

Todavia, estaria o movimento espírita atento a este fato? Existem prescrições não-antropocêntricas nas obras espíritas? O movimento espírita está inserido no debate da ampliação da comunidade moral para os animais e ecossistemas?

2. Espiritismo e Ecologia

As obras de Allan Kardec abordam alguns pontos fundamentais para o espiritismo: Deus; Leis Morais; Natureza, origem e destino do espírito; Mundo espiritual e suas relações com o mundo material; além do restabelecimento do verdadeiro sentido da moral de Jesus, considerando-o como o espírito mais perfeito que Deus ofereceu à humanidade para lhe servir de guia e modelo.

O espiritismo se pretende de natureza tríplice, para abranger princípios filosóficos, científicos e religiosos ou morais. Como afirmou Allan Kardec: O Espiritismo é, ao mesmo tempo, uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como ciência prática, consiste nas relações que se podem estabelecer entre nós e os Espíritos; como filosofia, compreende todas as consequências morais que decorrem de tais relações” [4].

Quanto ao aspecto religioso, Allan Kardec pretendeu que o espiritismo fosse uma doutrina moral diferente das religiões tradicionais. Para ele, se o Espiritismo se dissesse uma religião, o público não veria aí senão uma nova edição, com uma casta sacerdotal com seu cortejo de hierarquias, cerimônias e privilégios. Não tendo para ele o Espiritismo caracteres de uma religião, na acepção usual do vocábulo, não podia nem devia enfeitar-se com esse título. Eis porque simplesmente se diz: doutrina filosófica e moral.

Seu método, denominado por Kardec de “Controle Universal do Ensino dos Espíritos”, significa que para validar um conhecimento trazido pelos espíritos deveria se passar por duas formas básicas de controle: a razão, com uma lógica rigorosa baseada nos dados positivos, somados ao bom senso; e a concordância no ensino dos Espíritos mediante a comparação de inúmeras mensagens. Afirmou Kardec: Uma só garantia séria existe para o ensino dos Espíritos: a concordância que haja entre as revelações que eles façam espontaneamente, servindo-se de grande número de médiuns estranhos uns aos outros e em vários lugares” [5].

Nesse particular, vale destacar que Allan Kardec se valeu da epistemologia das ciências naturais hegemônicas do seu tempo, que foram sendo abandonadas ao longo do século 20 para lidar com a complexidade das humanidades e sociedades, pois os fenômenos psicológicos, históricos, sociais e culturais não funcionam como os fenômenos físicos, isto é, segundo leis altamente regulares e obedientes à sua repetição [6].

O Espiritismo se disseminou no Brasil, predominantemente, como um sistema religioso, apesar de, como visto, se constituir como um tripé filosofia, ciência e moral. Atualmente, os espíritas representam o terceiro maior grupo religioso do Brasil, e Allan Kardec se tornou um dos pensadores franceses de maior influência entre os brasileiros, provavelmente o autor francês mais lido no Brasil.

Especialmente em O Livro dos Espíritos, destacam-se as Leis Morais, como sendo um conjunto de leis divinas que regem a dimensão moral do ser. Para o Espiritismo, a lei divina (ou lei natural) abrange as leis físicas e as leis morais. As leis físicas são as leis do mundo natural material, objeto de estudo e compreensão das várias ciências existentes, e as Leis Morais são referentes às relações do humano com Deus e com seu próximo.

As Leis Morais foram divididas em dez partes, são elas: Lei de adoração, Lei do trabalho, Lei de reprodução, Lei de conservação, Lei de destruição, Lei de sociedade, Lei de progresso, Lei de igualdade, Lei de liberdade e Lei de justiça, amor e caridade. Esta última, segundo os espíritos na questão 648 de O Livro dos Espíritos, “é a mais importante, por ser a que faculta ao homem adiantar-se mais na vida espiritual, visto que resume todas as outras”.

Penso que a ideia de Leis Naturais/Universais precisam ser problematizadas pelos espíritas, já que formuladas no contexto do século 19, com base nas ciências naturais, no positivismo e na moral burguesa. Diferente do que se pensava no século 19, a partir do século 20, com a consolidação da sociologia, da antropologia, da história e outras ciências sociais e humanas, a ideia de leis (positivismo) e universais (etnocêntricas) não se sustentam mais. O brilhante professor lionês fez maravilhas com o que tinha à época, mas era impossível fugir muito do seu contexto. Então, a ideia de leis naturais, pensadas a partir de epistemologias sociais contemporâneas, não expressariam “leis”, ainda mais “universais”, pois elas são produtos formulados a partir de um contexto, que não necessariamente servem para outros.

É preciso ter este cuidado e respeito com a diversidade das culturas. Pois, por exemplo, a sociedade europeia, a francesa, de Kardec, assumiu a ideia de universalização a partir da sua própria cultura, e esse ímpeto colonial de universalização, negou as outras culturas! Inclusive, classificou moralmente pessoas e sociedades negras e indígenas como primitivas, como inferiores, causando o maior genocídio da nossa história, pelas invasões coloniais, cujas as consequências se encontram até hoje, por isso a importância dos estudos decoloniais, de uma teoria social espírita, por exemplo, para que se tenha um olhar contextual e social desta ideia de leis universais.

Então, tentando ser propositivo, eu suspeito que: 1) as leis universais espíritas poderiam ser repensadas como princípios ético-morais do espiritismo, e não como leis universais. Isso ajudaria até mesmo os espíritas no diálogo e aproximação com outras culturas de espiritualidade; 2) que as leis universais poderiam ser reformuladas a partir do nosso contexto social e das ciências contemporâneas. Isso daria uma maior aderência aos desafios do nosso tempo. E isso tudo num exercício de fé raciocinada. Por fim, isso possibilitaria que a moralidade espíritas incluísse a defesa dos animais, pois é uma questão de ética, de compaixão e de justiça, tão evidente em nosso tempo e, tão necessária para o enfrentamento da emergência climática, e os espíritas buscam a ética nas suas atividades e relações.

Voltando ao assunto, dentre as Leis Morais, temos a Lei de Conservação, que é a que dá especial destaque à relação humana com a Natureza, enfatizando que o instinto de conservação foi dado a todos os seres vivos e que todos devem cumprir os desígnios divinos. Afirma que a Terra dispõe de capacidade suficiente para sustentar todas as vidas, e que, se falta para muitos o básico, não é por carência do meio ambiente, mas por imprevidência do ser humano que se esbanja do supérfluo ao invés do necessário, para satisfazer suas satisfações fictícias.

Na questão 707, os Espíritos afirmaram de forma categórica que “a Natureza não pode ser responsável pelos defeitos da organização social, nem pelas consequências da ambição e do amor-próprio”. Assim como na questão 714, destacaram que o excesso coloca o homem abaixo dos animais, já que estes se satisfazem com o necessário. Agindo assim, o homem “abdica da razão que Deus lhe deu como guia (…). As doenças, as enfermidades e, ainda, a morte, que resultam do abuso, são (…) o castigo à transgressão da lei de Deus”.

Em tempos de covid19 essa afirmação dos espíritos sobre as doenças e enfermidades chama atenção, pois a atual pandemia é fruto direto da cruel atividade humana de criação e consumo de animais, assim como foram aquelas outras oriundas do SARs-Cov (2002), gripe aviária (2003 e 2013), gripe suína (2009), MERs-Cov (2012) e outros. Ademais, segundo relatório divulgado pela FAO/ONU (2013), cerca de 70% das novas doenças que infectam seres humanos nas últimas décadas estão relacionadas à criação e consumo de animais. Não apenas os animais exóticos e silvestres, mas também aqueles denominados de animais “de produção” [6]. Oportuno ainda ressaltar que este vírus não foi produzido em laboratório, como se confirmou em dezenas de pesquisas científicas , desmentindo notícias falsas que desviam o foco da origem deste grave problema e anestesiam a responsablidade humana perante a Natureza [7].

A atual pandemia do Covid19 colocou ainda mais em evidência o risco de enormes consequências globais da criação e consumo de animais e da perda florestal. À medida que se promove o desmatamento aumenta-se o risco de micro-organismos – até então em equilíbrio – migrarem para o cotidiano humano e fazerem vítimas. É preciso lidar com as saúdes humana, animal e do ecossistema de forma integrada.

Vale frisar que as questões citadas são de 1860, antes das criações dos termos sustentabilidade e desenvolvimento sustentável. Foi em 1972 na Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente, em Estocolmo, que a sustentabilidade foi definida como a capacidade de um indivíduo/organização de utilizar os recursos naturais de maneira consciente, através de práticas ou técnicas desenvolvidas para este fim. Já o conceito de desenvolvimento sustentável decorreu do Relatório Brundland, da ONU, em 1987, como aquele que atende as necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atenderem as suas necessidades.

André Trigueiro, ao estudar estas Leis Morais em sua obra Espiritismo e Ecologia, aponta para necessidade de um senso de urgência ante à crise ambiental sem precedentes, destacando como que o modelo de desenvolvimento atual é “ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto”,e narra que alguns pesquisadores preferem usar a expressão “ecocídio” para designar o extermínio das condições que suportam a vida no planeta. Cabe ressaltar aqui que somos nós os predadores do ambiente que nos acolhe. Não se trata de uma fatalidade, castigo divino ou outra razão mística qualquer. Estamos hoje sofrendo os efeitos das escolhas que fazemos no dia a dia” [8].

Encerrando esta seção, Allan Kardec, à semelhança dos ecologistas, que compreendem a inter-relação e interdependência entre os seres, afirma que “tudo no universo se liga, tudo se encadeia; tudo se acha submetido à grande e harmoniosa lei de unidade” [9].

Por fim, este tema da relação humana com o mundo natural na obra de Allan Kardec foi posteriormente abordado em várias obras espíritas, em especial aquelas psicografadas pelos médiuns Francisco Cândido Xavier e Divaldo Pereira Franco, dentre outros autores e autoras, como Gabriel Dellane, Cairbar Schutell e Irvênia Prada.

3. Os animais segundo o Espiritismo

O evolucionismo espírita (evolução anímica), segundo a compreenão mais comum, compreende que a trajetória do Ser Espiritual na Terra se dá por meio dos vários degraus evolutivos, em alternância no mundo corporal e espiritual. Simplificando, evolui pelas fases mineral, vegetal, animal, humana, rumo à angelitude/espíritos puros. Essa evolução ocorre ao largo das centenas de milhões de anos, atravessando as diversas fases da cristalização, da sensibilidade vegetal, da percepção instintiva animal até alcançar a consciência humana, e seguirá logrando novas conquistas. Portanto, o animal humano e o não-humano tiveram a mesma origem e terão a mesma destinação.

Nas obras de Kardec (século 19) os animais não-humanos são considerados seres espirituais individuais e sensíveis (ou princípios inteligentes) que, devido à inteligência que já desenvolveram, são considerados como almas. A fase evolutiva do animal não-humano seria como um período de infância espiritual anterior à fase de humanidade.

É chegando na fase de humanidade, após lenta e gradativa elaboração nos demais estágios da Natureza, que o Espírito adquire o livre arbítrio, a capacidade de pensar em Deus e o senso moral, dentre outros atributos. Oportuno frisar que tais atributos diferencadores dos animais não-humanos são semelhantes aos que Aristóteles, Tomás de Aquino e Santo Agostinho definiram, de forma claramente antropocêntrica, para demarcar a superioridade do homem em relaçao às demais espécies.

Na sua última obra, publicada em 1868, quase 10 anos após a publicação de O Livro dos Espíritos, Kardec se afasta em alguma medida ao antropocentrismo, enfatizando que os animais não foram criados por Deus para servir aos seres humanos. Vejamos em A Gênese:

O orgulho levou o homem a dizer que todos os animais foram criados por sua causa e para satisfação de suas necessidades. […] Deus, decerto, não as criou por simples capricho da sua vontade, para dar a si mesmo, em seguida, o prazer de as aniquilar, pois que todas tinham vida, instintos, sensação de dor e de bem-estar. Com que fim ele o fez? Com um fim que há de ter sido soberanamente sábio” [10].

É conhecido o uso descabido das ideias de que os animais não-humanos não têm linguagem, não têm inteligência, não pensam, não sentem, não têm alma etc. tal como afirmou René Descartes (1596 – 1650) em sua teoria do animal-máquina, para a qual os seres humanos possuem alma e são capazes de pensamento e linguagem, e os animais são máquinas, autômatos, tal como um relógio, isto é, agem automaticamente.

Alguns espíritos na obra de Allan Kardec se contrapuseram a esse pensamento de Descartes, asseverando na questão 595 de O Livro dos Espíritos que “os animais não são simples máquinas, como supondes”, bem como, foram enfáticos sobre a linguagem dos animais na questão 594 da mesma obra. Vejamos:

594. Têm os animais alguma linguagem? “Se vos referis a uma linguagem formada de sílabas e palavras, não. Meio, porém, de se comunicarem entre si, têm. Dizem uns aos outros muito mais coisas do que imaginais […]”. 594-a) Há, entretanto, animais que carecem de voz. Esses parece que nenhuma linguagem usam, não? “Compreendem-se por outros meios. Para vos comunicardes reciprocamente, vós outros, homens, só dispondes da palavra? E os mudos? […] os animais possuem meios de se prevenirem e de exprimirem as sensações que experimentam. Pensais que os peixes não se entendem entre si? O homem não goza do privilégio exclusivo da linguagem […].

Confirmando essa afirmação, de que os animais são seres sencientes, no ano de 2012, um grupo internacional de especialistas das áreas de neurociência cognitiva, neurofarmacologia, neurofisiologia, neuroanatomia e neurociência computacional publicaram um anifesto na universidade de Cambridge, conhecido como a Declaração sobre a Consciência Animal, da qual destacamos um trecho:

“A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos [11]

Philip Low, neurocientista e pesquisador do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), que liderou a pesquisa acima, afirmou que as conclusões do manifesto tiveram grande impacto sobre o seu comportamento, o que o levou a se tornar vegano. E declarou: “Não é mais possível dizer que não sabíamos”.

Oportuno frisar que a alma do animal não-humano não foi detalhada na obra de Allan Kardec, mas sim nas obras espíritas posteriores, como se vê nos dois exemplos a seguir. Diga-se de passagem, a abordagem sobre os animais na obra de Kardec, seja na primeira ou na segunda edição (definitiva), apresenta claros traços antropocêntricos e especistas, sem diálogo com as éticas mais sensíveis aos animais e o mundo natural disponíveis no seu tempo. Vejamos os dois exemplos:

Escreveu Gabriel Delanne na obra Evolução Anímica publicada em 1895:

“Ora, como os animais possuem, não apenas a inteligência, mas, também, o instinto e a sensibilidade; e considerando o axioma que diz que todo efeito inteligente tem uma causa inteligente; assim como a grandeza do efeito é diretamente proporcional à potência da causa, temos o direito de concluir, que a alma animal é da mesma natureza que a humana, apenas diferenciada no desenvolvimento gradativo” [12].

Escreveu Emmanuel na obra chamada Emmanuel publicada em 1937:

“Nos irracionais desenvolvem-se igualmente as faculdades intelectuais. O sentimento de curiosidade é, na maioria deles, altamente avançado, e muitas espécies nos demonstram as suas elevadas qualidades, exemplificando o amor conjugal, o sentimento da paternidade, o amparo ao próximo, as faculdades de imitação, o gosto da beleza. Para verificar a existência desses fenômenos, basta que se possua um sentimento acurado de observação e de análise. Os animais têm a sua linguagem, os seus afetos, a sua inteligência rudimentar, com atributos inumeráveis. São eles os irmãos mais próximos do homem, merecendo, por isso, a sua proteção e amparo” [13].

Feita esta análise, a seguir entrarei mais especificamente na proposta deste artigo, ou seja, a proposta de eixos para uma Ética Animal Espírita.

4. Eixos da Ética Animal Espírita

São muitas as obras espíritas que destacam que é condição inerente à evolução do ser humano o respeito aos animais e à Natureza, conforme tem sido demonstrado em nosso Catálogo de Referências Bibliográficas da Ética Animal Espírita.

Destacam, ainda, a necessidade de ressiginificação do significado de família terrena, que deve se estender aos demais seres, independente da espécie que o ser espiritual habita. Nesse sentido, todos os seres da Terra compõem nossa família, estando todos nós, humanos e não-humanos sob o cuidado do mundo espiritual, sem distinção de espécies.

Desse compilado de mensagens, é possível extrair ao menos dois eixos para a relação humana com os animais não-humanos a partir do Espiritismo:

i) que é um dever sagrado dos humanos cooperar com a evolução dos animais e trabalhar pelo fim da crueldade contra eles, como condição inerente a própria evolução humana;

ii) que o vegetarianismo e o engajamento nos direitos dos animais e preservação da Natureza são valores inerentes a moral espírita.

Infelizmente, o movimento espírita ainda discute pouco esta temática e raros são os centros espíritas e federativas que orientam os seus adeptos a adotar a dieta vegetariana ou considerar a ética vegana. Seja de dentro ou fora do movimento, os espíritas vem sendo alvo de críticas em razão desta contradição e incoerência.

Quanto aos dois eixos, veja-se, por exemplo, o que disse o espírito Emmanuel através da psicografia de Chico Xavier a favor da dieta vegetariana estrita e da ética vegana, numa obra editada pela FEB – Federação Espírita Brasileira em 1941:

“A ingestão das vísceras dos animais é um erro de enormes consequências, do qual derivam numerosos vícios da nutrição humana. É de lastimar semelhante situação, mesmo porque, se o estado de materialidade da criatura exige a cooperação de determinadas vitaminas, esses valores nutritivos podem ser encontrados nos produtos de origem vegetal, sem a necessidade absoluta dos matadouros e frigoríficos” [14].

Oportuno destacar que anos após essa resposta de Emmanuel, em 1944, o veganismo ganhou seu nome, veganism, por meio do vegetariano Donald Watson, em contexto inglês. Watson distribuiu um periódico que tratava indiretamente da criação de uma nova sociedade vegetariana, a Vegan Society, a qual nasceu da discussão entre membros da Sociedade Vegetariana da Grã-Bretanha e se tornou, então, uma das primeiras instituições veganas do mundo.

Noutras obras, o mesmo autor espiritual asseverou que as noções de caridade trazidas pelo Espiritismo devem ser vividas também em relação aos seres não-humanos.

“Recebei como obrigação sagrada o dever de amparar os animais na escala progressiva de suas posições variadas no planeta. Estendei até eles a vossa concepção de solidariedade, e o vosso coração compreenderá, mais profundamente, os grandes segredos da evolução, entendendo os maravilhosos e doces mistérios da vida” [15].

“Recorda os elos sagrados que nos ligam uns aos outros na estrada evolutiva e colabora na extinção da crueldade com que até hoje pautamos as relações com os nossos irmãos menores” [16].

Segundo outro autor espiritual, André Luiz, numa obra chamada Conduta Espírita, se faz necessário “abster-se de perseguir e aprisionar, maltratar ou sacrificar animais […] a título de recreação, em excursões periódicas aos campos, lagos e rios, ou em competições obstinadas e sanguinolentas do desportismo” [17].

Além do mais, enfatiza André Luiz na referida obra que no socorro aos animais doentes se deve usar os recursos terapêuticos possíveis, mesmo aqueles de natureza mediúnica tão utilizados nas práticas espíritas, como passes, preces e água fluidificada.

Ainda são poucos os centros espíritas que oferecem tratamento aos animais. Destacamos o grupo ASSEAMA – Associação Espírita Amigo dos Animais. Trata-se de uma organização espírita e vegana, sem fins lucrativos, com todas as suas atividades voltadas à proteção e amparo animal.

Outra autora espiritual, Joanna de Ângelis, pela mediunidade de Divaldo Pereira Franco, deu especial destaque à relação humana com o mundo natural. Por exemplo, que “os devastadores da flora e destruidores da fauna perderam a direção da vida e emaranharam-se no aranzel da desmedida ambição, autodestruindo-se, sempre que investem contra as manifestações sencientes que existem” [18].

Joanna de Ângelis afirma que não se pode sentir compaixão apenas dos seres pensantes e que o respeito aos animais, vegetais, minerais é uma necessidade para que o espírito assuma verdadeiramente a condição de humanidade. Disse a autora:

“Novamente, o aspecto da compaixão adquire significado, porquanto a busca da Natureza e das suas várias expressões, como fases da evolução da vida, deve ser considerada como essencial, a fim de alcançar o sentimento de humanidade”. O indivíduo que se apiada do sofrimento do seu próximo – vegetal, animal ou humano – desejando ajudá-lo, facilmente se ilumina, em face do conhecimento que possui em torno do significado existencial da vida na Terra. Esse fenômeno é resultado das tendências universais resultantes do processo da evolução moral, manifestando-se nesse expressivo sentimento de compaixão, dos mais altos que a psique humana pode exteriorizar” [19].

Outro espírito, Alexandre, em diálogo com o espírito André Luiz, narrou os erros praticados quando encarnado, em relação ao consumo de animais para obtenção da proteína, um mero pretexto, e descreve como a inteligência humana se empobrece quando abate, comercializa e consome animais:

“A pretexto de buscar recursos proteicos, exterminávamos frangos e carneiros, leitões e cabritos incontáveis. Sugávamos os tecidos musculares, roíamos os ossos. Não contentes em matar os pobres seres que nos pediam roteiros de progresso e valores educativos, para melhor atenderem a Obra do Pai, dilatávamos os requintes da exploração milenária e infligíamos a muitos deles determinadas moléstias para que nos servissem ao paladar, com a máxima eficiência. […] Encarecíamos, com toda a responsabilidade da Ciência, a necessidade de proteínas e gorduras diversas, mas esquecíamos de que a nossa inteligência, tão fértil na descoberta de comodidade e conforto, teria recursos de encontrar novos elementos e meios de incentivar os suprimentos proteicos ao organismo, sem recorrer às indústrias da morte” [20].

A mesma dupla, noutro capítulo, narra a dramática ambiência espiritual de um matadouro, o que agrava ainda mais a incoerência do movimento espírita de pouco abordar a importância do vegetarianismo e o dever ético para com os animais não humanos, ante tais informações de sua própria literatura.

“Pelas vibrações ambientes, reconheci que o lugar era dos mais desagradáveis que conhecera, até então, em minha nova fase de esforço espiritual. Seguindo Alexandre de muito perto, via numerosos grupos de entidades francamente inferiores que se alojavam aqui e ali. Diante do local em que se processava a matança dos bovinos, percebi um quadro estarrecedor. Grande número de desencarnados, em lastimáveis condições, atiravam-se aos borbotões de sangue vivo, como se procurassem beber o líquido em sede devoradora…Alexandre percebera o assombro doloroso que se apossara de mim e esclareceu-me com serenidade: – Está observando, André? Estes infelizes irmãos que nos não podem ver, pela deplorável situação de embrutecimento e inferioridade, estão sugando as forças do plasma sanguíneo dos animais. São famintos que causam piedade. Poucas vezes, em toda a vida, eu experimentara tamanha repugnância. As cenas mais tristes das zonas inferiores que, até ali, pudera observar, não me haviam impressionado com tamanho amargor” [21].

Outro espírito, Humberto de Campos, também recomendou o vegetarianismo, dizendo “comece a renovação de seus costumes pelo prato de cada dia. Diminua gradativamente a volúpia de comer a carne dos animais. O cemitério na barriga é um tormento, depois da grande transição” [22].

É possível concluir que os preceitos espíritas deveriam conduzir à ética/política vegana, devido às inúmeras informações contidas em sua própria literatura, promovendo junto a seus adeptos um agir moral no mundo extensivo a toda a Natureza, em oposição ao prejudicial modelo antropocêntrico-especista exponenciado pelo capitalismo.

5. Síntese propositiva

Foi poss´ível compreender que a obra espírita de Kardec apresenta conteúdos antropocêntricos e especistas em relação aos animais, tendo aproveito pouco dos conteúdos da ética animal disponíveis no seu tempo. Em relação ao meio ambiente, a obra de Kardec apresenta enfáticas defesas, dialogando com a ética ambiental.

Já as obras espíritas posteriores a Kardec, apresentam defesas mais alinhadas com as ética animal e ambiental, reconhecendo a importância do vegetarianismo, defendendo o engajamento pelo fim da crueldade contra os animais e a preservação do meio ambiente.

Levando isso em consideração, é possível inferir que para o espiritismo a humanidade detém responsabilidades e compromissos com os seres não-humanos, e que na dinâmica evolutiva espírita a fase evolutiva de humanidade (nossa fase atual) não lhe outorga o direito de explorar os seres da fase evolutiva de animalidade (nossa fase anterior), mas, sim, o dever de cuidar, defender e preservar. Ou seja, os animais não existem para servir aos interesses humanos, como disse Kardec.

Assim, é possível extrair ao menos dois eixos para uma ética animal de tipo espírita, que poderiam fazer parte dos estudos e práticas nos espaços espíritas: i) engajamento pelo fim da crueldade contra os animais não-humanos e ii) adoção da dieta vegetariana.

Todavia, salvo exceções, o movimento espírita não tem dado a devida atenção ao tema de nossa relação com os animais, agindo de maneira incoerente com a sua própria literatura e princípios de caridade que a norteia, ficando de fora do debate da ampliação da comunidade moral para os animais. Por outro lado, o movimento vem sofrendo pressões de seus próprios adeptos e da sociedade, o que tem gerado mudanças em favor da vida animal. 

Na medida em que o Espiritismo se funda na prática da caridade e da paz, é plenamente possível o desenvolvimento de uma Ética Animal de tipo Espírita que some forças na luta pelo fim da crueldade que os animais são vítimas diariamente.

Assimilar tais valores nos espaços espíritas é questão de coerência, sobretudo neste tempo em que a ciência já constatou que os animais sentem e que a indústria da carne é uma das maiores responsáveis pela emergência climática. Aliás, combater a violência contra os animais é, por si só, questão ética.

Referências:

[1] THOMAS, Keith. O Homem e o Mundo Natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 19.

[2] FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO ANIMAL, Salvador: Instituto de Abolicionismo Animal, v. 1, n. 1, jan./dez. 2006, pp. 207-230.

[3] LOURENÇO, D. B. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2008.

[4] KARDEC, Allan. O que é o espiritismo. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 1. ed. Rio de Janeiro: FEB, 2009. Preâmbulo.

[5] KARDEC, A. O Evangelho Segundo o Espiritismo. 131ª ed., 1ª impressão, 2013. Introdução. II – Autoridade da Doutrina Espírita, p.22.

[6] https://news.un.org/pt/story/2013/12/1460081-fao-70-das-novas-doencas-em-humanos-tiveram-origem-animal#:~:text=Desde%201940%2C%2070%25%20das%20novas,%2C%20divulgado%20esta%20segunda%2Dfeira  

[7] https://portal.fiocruz.br/pergunta/qual-origem-desse-novo-coronavirus?fbclid=IwAR3AwtbzSGxBqF5yQB7YC6tRlG-S1PQcFI11B6YQ7sB3dCErZe0ebfx57CM  

[8] TRIGUEIRO, A. Espiritismo e Ecologia. 3ª ed. 2 imp. Brasília: FEB, 2013. Capítulo “Consumo Consciente”. pp. 16.

[9] KARDEC, A. A Gênese. Tradução de Guillon Ribeiro. Rio de Janeiro: FEB, cap. XIV, item 12.

[10] KARDEC, A. A Gênese. 3 ed. Catanduva: INSTITUTO BENEFICENTE BOA NOVA, 2007. 347 p. Capítulo 7 “Esboço geológico da Terra”, item 32, pp. 127-128.

[11] Consultado na WWW: Declaração de Cambridge sobre a Consciência Animal.Disponível em: http://www.labea.ufpr.br/portal/wp-content/uploads/2014/05/Declara%C3%A7%C3%A3o-de-Cambridge-sobre-Consci%C3%AAncia-Animal.pdf

[12] DELANNE, G. A evolução anímica. 1 ed. Limeira: EDITORA DO CONHECIMENTO, 2008. 239 p. Capítulo 1 “A vida”, item “A força vital”, pp. 30.

[13] XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). Emmanuel. 28 ed. 5 imp. Brasília: FEB, 2016. 208 p. Capítulo 17 “Sobre os animais”, pp. 109-113.

[14] XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). O Consolador. 29 ed. 5 imp. Brasília: FEB, 2017. 305 p. Capítulo 2 “Filosofia”, item 2.1. “Vida”, subitem 2.1.1. “Aprendizado”, questão 129, pp. 90-91.

[15] XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). Emmanuel. 28 ed. 5 imp. Brasília: FEB, 2016. 208 p. Capítulo 17 “Sobre os animais”, pp. 109-113.

[16] XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). Alvorada do Reino. 1 ed. São Paulo: IDEAL, 1988. 102 p. Capítulo 15 “Na senda de ascensão”, pp. 78-82.

[17] VIEIRA, W. ANDRÉ LUIZ (Espírito). Conduta espírita. 32 ed. 7 imp. Brasília: FEB, 2017. 118 p. Capítulo 33 “Perante os animais”, pp. 89-90.

[18] FRANCO, D. P.; JOANNA DE ÂNGELIS (Espírito). Garimpo de amor. 6 ed. Salvador: LEAL, 2015. 200 p. Capítulo 18 “Amor e conflitos”, pp. 119.

[19] FRANCO, D. P.; JOANNA DE ÂNGELIS (Espírito). Encontro com a Paz e a Saúde. 5 ed. Salvador: LEAL, 2016. 232 p. Capítulo 10 “Em busca da iluminação interior”, item “Processo de autoiluminação”, pp. 198-201.

[20] XAVIER, F. C.; ANDRÉ LUIZ (Espírito). Missionários da Luz. 45 ed. 3 imp. Brasília: FEB, 2015. 382 p. Capítulo 4 “Vampirismo”, p. 42-46, pelo benfeitor Alexandre.

[21] XAVIER, F. C.; ANDRÉ LUIZ (Espírito). Missionários da Luz. op. cit., p. 143-144.

[22] XAVIER, F. C.; IRMÃO X (Espírito). Cartas e Crônicas. 14 ed. 3 imp. Brasília: FEB, 2015. 167 p. Capítulo 4 “Treino para a morte”, pp. 18.

2 respostas
  1. Sandra
    Sandra says:

    Contraditório que espiritas geralmente se reportem à Caridade, porém absolutamente indiferentes para com os animais anonimos que agonizam no mar do próprio sangue, nos Matadouros. Embora enfatizando o direito à vida, eloquentes e comovidos, dão solenemente as costas quando se trata dos animais destinados à panela, aliviando a própria consciência com citações daqui e dali que lhes permita a continuação da prática macabra de consumir cadáveres, carregados da energia negativa do desespero e do medo que os animais sentiram diante da morte. Acomodados em sua zona de conforto, “nem aí ” para bois, porcos, aves e peixes torturados e mortos para seu consumo inconsciente, predatório, ecologicamente incorreto e antagônico com a empatia e a compaixão que deveria sentir, mas se recusa, por preguiça, desinteresse e absolutamente falta de amor. No entanto não se imaginam fora do Mundo Regenerado, onde acham que habitarão com as mãos sujas do sangue deles e com a pança entupida das vísceras mal digeridas e ainda quentes dos seres que, na condição de Espirita Cristã, sempre considerou IRMÃOS.

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