Artigo #09: A resposta Espírita ao antropocentrismo

Por Rafael van Erven Ludolf

No retorno à existência corpórea, trazemos, evidentemente, nossa bagagem espiritual juntamente com as tendências, boas ou más, decorrentes das experiências adquiridas noutros tempos [1]. De igual maneira, trazemos também uma forma particular de pensar, um tipo psicológico adquirido culturalmente, que acabou por moldar a nossa visão de mundo e, consequentemente, a maneira de nos relacionarmos com todos os seres, e em especial, com os animais não-humanos. É por isso que, não raro, ao nos depararmos com algum assunto, temos aquela sensação: “Nossa, é exatamente o que eu penso !!!”

Nesse passo, oportuno se faz investigar a psicologia geral dos seres humanos em relação aos outros reinos da Criação para se compreender quais modelos de pensamento configuraram a forma atual do ser humano de pensar, agir e se relacionar com os animais, valendo-se dos registros históricos do passado e levando-se em consideração a lei da reencarnação tão bem explicada pelo Espiritismo [2], ajudando-nos a abrir essa bagagem espiritual e jogar fora, agradecidos, aquilo que não nos serve mais.

De fato, um dos meios mais práticos e eficazes que tem o homem de se melhorar nesta vida é pelo conhecimento de si mesmo [3], e para que possamos modificar as estatísticas dos mais de 70 bilhões de animais terrestres produzidos a cada ano para o consumo humano, excluídos os aquáticos, conforme o relatório da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), “Tackling Climate Change Through Livestock” (Combatendo as Mudanças Climáticas por Meio da Pecuária), que reafirma ainda que tal produção de animais é um dos fatores mais devastadores da natureza [4], precisamos urgentemente de autocrítica, autoavaliação e autodescoberta, para a necessária ressignificação.

É como nos disse a benfeitora Joanna de Ângelis: “O ser consciente deve trabalhar-se sempre, partindo do ponto inicial da sua realidade psicológica, aceitando-se como é e aprimorando-se sem cessar. Somente consegue essa lucidez aquele que se auto-analise, disposto a encontrar-se sem máscara, sem deterioração. Para isso, não se julga, nem se justifica, não se acusa nem se culpa. apenas descobre-se.” [5].

Assim, abrindo nossa bagagem histórica, psicológica, reencarnatória, esbarramos logo de início no paradigma antropocêntrico, que se resume na ideia da superioridade humana em relação aos demais seres da Criação, constituindo-nos como o centro da Terra e, portanto, com direito exclusivo de usar, explorar, escravizar e assassinar todos os seres que estão abaixo da espécie humana, em especial os animais não-humanos, seja para consumo, entretenimento, vestuário, experimentação científica, utensílios e etc.

O antropocentrismo, apesar de ganhar força na Europa no fim da Idade Média, modelando a estrutura de expressão cultural, científica, filosófica e religiosa da era moderna, surgiu desde antes da era cristã, com o que se costuma chamar de antropocentrismo teleológico (finalista), que significa dizer que o mundo e tudo que nele habita foi criado para o uso e benefício do ser humano. Eis o homem nessa visão de mundo: o centro de todas as ações.

“A problemática é profunda e tem raízes na Grécia Antiga, tendo como representante maior Aristóteles e sua “Grande Cadeia do Ser”, que colocou os seres humanos num patamar superior, abençoados com a racionalidade, e negou aos animais capacidades que consequentemente poderiam lhe conceder direitos. A finalidade do animal era unicamente servir o homem. Também os romanos, com a dicotomia pessoa/coisa, tão cara ao Direito e que ainda é base de diversos sistemas jurídicos contemporâneos contribuíram para este centramento, reproduzindo que os animais seriam coisas, situadas no âmbito do direito de propriedade. Na tradição judaico-cristã, encontra-se também raízes, que com a doutrina agostiniana e a filosofia tomista reforçaram a coisificação dos animais, afirmando que o mandamento “não matarás” não se aplica aos animais. Chegando-se até a era moderna, da renascença ao racionalismo clássico e o mecanicismo cartesiano, culminando, em síntese, com o pensamento do filósofo Immanuel Kant, que influencia especialmente o Direito e suas conceituações jurídico-constitucionais da dignidade da pessoa humana, colocando-o como “fim em si mesmo” em todas as relações, apenas com deveres indiretos com os animais, já que, nesta visão, eles não possuem autoconsciência e existem meramente como meios para um fim. Esse fim é o homem.” [6]

Aprofundando ainda mais nesse paradigma, “pensando o passado para compreender o presente e idealizar o futuro” como disse Heródoto, nada melhor para se conhecer a relação do homem com o mundo natural desde 1500 do que a obra do autor Keith Thomas (1988), chamada O Homem e o Mundo Natural – Mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800) [7] que, ao estudar a sociedade inglesa desse período, dissipou o preconceito de que antes da industrialização o homem dava mais valor à natureza, demonstrando que, ao contrário, somente quando a fauna e a flora foram dizimadas é que o homem passou a valorizar os recursos naturais.

Keith Thomas demonstra, de maneira muito precisa e para nosso pesar, com uma vasta citação de escritores, poetas, jornalistas, teólogos e filósofos daquela época, a imensa indiferença e brutalidade do homem com os animais e a natureza. Impressionante como todas as manifestações culturais, sociais e psicológicas do homem nesse período eram enfáticas para o diferenciar dos animais, pois esses eram vistos como coisas inferiores, e o homem para demonstrar sua superioridade devia se portar na sociedade de maneira bem diversa dos animais, desde o vestir, ao andar, ao falar, ao dançar, ao comer e até mesmo na higiene pessoal. Na verdade, não havia dúvidas para a religião, a ciência e a filosofia predominantes de que os animais eram meros objetos de servidão para os seres humanos.

Narra Thomas: “No caso dos animais, a crueldade mais corrente, no início do período moderno, era a INDIFERENÇA. Para a maioria das pessoas os bichos estavam fora dos termos de referência moral. (…) Um bom exemplo de como as pessoas estavam acostumadas a tirar a vida animal encontramos no diário do estudante T. Isham (1670). Seu pequeno diário registra uma infinidade de matanças de galos, abate de bois, afogamento de filhotes de cães. (…) caçada a lebres, captura de martas em armadilhas, morte de pardais a pedradas e castrações de touros.” [7]

No mesmo passo, vale lembrar que os bons espíritos, na Codificação Kardequiana, igualmente alertaram quanto à necessidade de curar a indiferença moral: “Cada época é marcada, assim, com o cunho da virtude ou do vício que a deve salvar ou a perder. A virtude da vossa geração é a atividade intelectual; seu vício é a INDIFERENÇA MORAL.” [8]

Enfim, fácil constatar, portanto, porque o homem moderno age dessa maneira com os animais: estávamos lá! Pois se, atualmente, a era é moderna, ainda carregamos uma bagagem psicológica medieval, que necessita de reconfiguração.

Por outro lado, demonstra também Keith Thomas que nesse período de 1500 – 1800, ocorreu uma série de transformações na maneira pela qual homens e mulheres, de todos os níveis sociais, percebiam e classificavam o mundo natural ao seu redor, surgindo novas sensibilidades em relação aos animais, às plantas e à paisagem. O relacionamento dos homens com outras espécies começou a ser redefinido, o seu direito de explorar essas espécies em benefício próprio se viu fortemente contestado, produzindo um imenso interesse pelo mundo natural, localizando-se aí as raízes dos movimentos de proteção dos animais da era moderna, tendo nascido a partir de 1800 movimentos de defesa dos animais, das plantas, da paisagem, da natureza (aqui enquadraremos o Espiritismo, nos últimos parágrafos).

Assim, reconstruindo o mundo mental do passado ante a percepção dos ingleses frente aos animais e ao meio ambiente, a partir da perspectiva de Keith Thomas, podemos até mesmo afirmar que tais conflitos da comunidade inglesa desde 1500 refletiram no nascimento da era atual do veganismo, fundado em 1944 por Donald Watson também na Inglaterra, e que vem se expandindo vertiginosamente no mundo, com o objetivo de “excluir, na medida do possível e do praticável, todas as formas de exploração e de crueldade contra os animais, seja para a alimentação, para o vestuário ou para qualquer outra finalidade.”

Ademais, no meu caso particular, ao estudar a obra de Keith Thomas, e estando hoje na seara espírita cristã, me foi possível perceber (observando a mim mesmo) um pouco da psicologia humana sobre a natureza, e pude compreender com maior facilidade a dificuldade que a sociedade moderna tem, em geral, para enxergar os animais como irmãos, tendo sido tudo muito valioso para a ressignificação da minha relação com a natureza.

O que mais sobressaltou aos meus olhos nessa pesquisa foi observar como que a religião predominante contribuiu para a institucionalização do modelo antropocêntrico, e como esta concepção se reflete negativamente na era moderna. Agora, na condição de tarefeiro espírita, movimento também religioso, devo me engajar para ressignificar esse modelo de pensamento antropocêntrico, para cuja concretização devo ter certamente contribuído.

E nesse quadro apresentado por Keith Thomas, encontramos mais um papel de suma importância do Espiritismo, apesar de quase ignorado em nosso meio. O Espiritismo foi codificado em 1857 na França, por Allan Kardec, justamente no período constatado pelo autor como o “surgimento de novas sensibilidades em relação aos animais, às plantas e à paisagem”.

OU SEJA, O ESPIRITISMO REFLETE MAIS UMA RESPOSTA DO ALTO, DE JESUS, GOVERNADOR PLANETÁRIO, PARA COMBATER O BOM COMBATE CONTRA O ANTROPOCENTRISMO.

Basta se verificar as centenas de mensagens contidas no conjunto literário fundamental da Doutrina Espírita, desde a Codificação às obras subsidiárias, no compêndio que chamamos aqui no MOVE de CATÁLOGO DE REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DA ÉTICA ANIMAL ESPÍRITA, que você conferir em nosso site, onde encontramos até o momento mais de 180 trechos referentes a mais de 100 obras espíritas clássicas, enfrentando diretamente o paradigma antropocêntico para superá-lo.

Tal discriminação ético/moral com tudo o que não seja humano levou a humanidade à condição de consumidores vorazes da Terra, resultando numa crise ambiental (e moral) sem precedentes. Todavia, Jesus segue no leme e tem enviado seus Instrutores para derrubar os conceitos antropocêntricos e especistas, que apesar de já derrubados pela ciência, ainda vigem no coração humano.

Não se pode mais sustentar em pleno século 21 que os animais são irracionais, não tem linguagem, não tem inteligência, não sofrem, não sentem, não socializam, não se importam com suas vidas, não tem alma, não evoluem e etc. A ciência e o Espiritismo (com antecipação secular) já derrubaram estes conceitos criados tão somente para a exploração de tudo que não fosse humano, afetados pelo paradigma antropocêntrico.

Desse modo, apesar de o movimento espírita ainda não ter se atentado e cumprido este propósito como deveria, a Doutrina Espírita contribuiu sobremaneira com o gradativo rompimento com o antropocentrismo, tendo sido uma das maiores respostas de Jesus contra este modelo, para que, vencendo a nós mesmos, passemos enquanto humanidade a agir como irmãos da Natureza e não como verdugos crueis.

Vejamos algumas das centenas de contribuições do Espiritismo contra o antropocentrismo:

  • “O homem está para o animal simplesmente como um superior hierárquico. Nos irracionais desenvolvem-se igualmente as faculdades intelectuais. O sentimento de curiosidade é, na maioria deles, altamente avançado, e muitas espécies nos demonstram as suas elevadas qualidades, exemplificando o amor conjugal, o sentimento da paternidade, o amparo ao próximo, as faculdades de imitação, o gosto da beleza. Para verificar a existência desses fenômenos, basta que se possua um sentimento acurado de observação e de análise.” [9]
  • Os animais são almas em evolução, tendo como meta se tornarem Espíritos humanos (Q597; Q597-a; 607-a) [10];
  • “Recebei como obrigação sagrada o dever de amparar os animais na escala progressiva de suas posições variadas no planeta” [9];
  • Não temos respeitado esses laços afetivos entre os animais quando os separamos de suas famílias e de seus amigos para que sejam comercializados nas indústrias da carne, do leite, dos ovos [11 e 12];
  • O abate de animais em tenra idade, enquanto poderiam viver por décadas, acarreta um excesso de fluido vital, e, segundo André Luiz, os fluidos são absorvidos pelos irmãos desencarnados em desequilíbrio e ainda dependentes das sensações da matéria (vampirismo). Essa necessidade de fluido vital os induz a permanecerem nas sombras, pois para conseguirem as energias, precisam prestar serviços aos Espíritos desencarnados que chefiam os matadouros, ambiente que, segundo André Luiz, é o pior que ele já viu [12];
  • Segundo Emmanuel, “a ingestão das vísceras dos animais é um erro de enormes consequências, do qual derivaram numerosos vícios da nutrição humana.” [13]
  • Segundo Humberto de Campos, “O cemitério na barriga é um tormento, depois da grande transição. O lombo de porco ou o bife de vitela, temperados com sal e pimenta, não nos situam muito longe dos nossos antepassados, os tamoios e os caiapós, que se devoravam uns aos outros.” [14]
  • Segundo André Luiz, é preciso “Abster-se de perseguir e aprisionar, maltratar ou sacrificar animais (…) a título de recreação, em excursões periódicas aos campos, lagos e rios, ou em competições obstinadas e sanguinolentas do desportismo”. (…) No socorro aos animais doentes, usar os recursos terapêuticos possíveis, sem desprezar mesmo aqueles de natureza mediúnica.” [15]
  • Segundo Emmanuel, devemos aprender a Lei de Deus nas páginas vivas da Natureza, que aguardam a nossa piedade “para as árvores despejadas, para as fontes poluídas, para as aves sem ninho ou para os animais desamparados e doentes.” [16]
  • Por fim, segundo Joanna de Ângelis, devemos “ama(r) pelo caminho quanto possas, plantas, animais, homens, e te descobrirás superiormente amando a Deus”. [17]

O Espiritismo reflete o chamado de Jesus ao bom combate contra o antropocentrismo, que ainda vige em nossa bagagem espiritual, em nosso dia a dia, em nossa conduta e cultura, que necessitam urgentemente de ressignificação.

É possível. Não é tão difícil. E podemos te ajudar.

Portanto, no seu lar, no seu trabalho, na sua vida social e na sua casa espírita, onde puderes, se mova também pelos animais e toda a Natureza, e não somente pelos humanos.

Referências:

[1] KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Questão 872.

[2] KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Questão 166.

[3] KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. Questão 919.

[4] http://www.fao.org/3/i3437e/i3437e.pdf

[5] FRANCO, D. P.; JOANNA DE ÂNGELIS (Espírito) . O Ser Consciente. Prefácio.

[6] LUDOLF, Rafael V. Exportação de Gado Vivo No Brasil: Uma Proposta Para Garantia da Regra Constitucional da Proibição da Crueldade contra os Animais sob a Ótica do Direito Animal. 2019. Dissertação. UFF. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.xhtml?popup=true&id_trabalho=7706470

[7] THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural – mudanças de atitude em ralação às plantas e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

[8] KARDEC, A. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo IX – Bem-aventurados os que são dóceis e pacíficos. Instruções dos Espíritos. Obediência e resignação.

[9] XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). Emmanuel. 28 ed. 5 imp. Brasília: FEB, 2016. 208 p. Capítulo 17 “Sobre os animais”, pp. 109-113.

[10] KARDEC, A. O Livro dos Espíritos, 2ª parte, capítulo XI.

[11] XAVIER, F. C.; ANDRÉ LUIZ (Espírito). Os Mensageiros. 47 ed. Brasília: FEB, 2016, cap. 42. pp 255-259.

[12] XAVIER, F. C.; ANDRÉ LUIZ (Espírito). Missionários da Luz. 45 ed. Brasília: FEB, 2015, cap. 4 e 11.

[13] XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). O Consolador. Questão 129.

[14] XAVIER, F. C.; IRMÃO X (Espírito). Cartas e Crônicas. 14 ed. 3 imp. Brasília: FEB, 2015. 167 p. Capítulo 4 “Treino para a morte”, pp. 18.

[15] VIEIRA, W. ANDRÉ LUIZ (Espírito). Conduta espírita. 32 ed. 7 imp. Brasília: FEB, 2017. 118 p. Capítulo 33 “Perante os animais”, pp. 89-90.

[16] XAVIER, F. C.; EMMANUEL (Espírito). Alma e luz. Capítulo “O maior mandamento”.

[17] FRANCO, D. P.; JOANNA DE ÂNGELIS (Espírito). Leis Morais da Vida. 15 ed. Salvador: LEAL, 2014. 224 p. 2ª parte, cap. 1 “Amar a Deus”, pp. 18.

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